como se morre.

Data 15/07/2010 16:55:24 | Tópico: Textos




quero dizer-te que vou morrer. arranjarei com antecedência seis braços que me levem o corpo até ao buraco. aberto de antemão por um coveiro velho com ar de poucos amigos. requisitarei o serviço de duas ou três alcoviteiras que falem mal de mim à porta do cemitério. mais quatro ou seis bocas que gritem. não quero que chores, peço-te. chorar seria dar-lhes a certeza de uma morte triste e já te disse que quero morrer feliz. após a minha morte um corpo mandará tocar os sinos a rebate. possivelmente irão estranhar, quando dos sinos caírem confetis e serpentinas, e estoirarem nas nuvens duas dúzias e meia de girândolas. para o velório tenho reservado um concerto do grupo musical: zé cândido e as suas partenaires. pela manhã haverá uma intervenção estratégica de um padre gordo que informará os presentes a que o horas o corpo irá a enterrar. escolhi uma campa voltada para o sul com vista sobre a sebe, onde pelo mês de março as abelhas fazem colmeias. não haverá nenhuma fotografia sobre a campa, muito menos velas, que a cera é difícil de retirar no basalto que escolhi para o tampo. um vaso de girassóis será colocado aos pés da campa, junto deste um aquário com três tristes peixes. o topo da campa está estrategicamente posicionado para durante oitenta por cento do dia ficar sob a sombra da capela mor, onde também em março as andorinhas encontram ninho. já gravei a voz do mar numa cassete. quero que toque ininterruptamente na aparelhagem que mandarei instalar perto do aquário. que os peixes nunca o esqueçam. que mo lembrem. duas semanas depois do funeral zés pereiras, gigantones e cabeçudos darão sete voltas ao cemitério pelo lado de fora e três voltas e meia pelo lado de dentro, com um estandarte onde aparecerei mascarada de flor. depois quero que me esqueças.







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