Crónica à juventude

Data 25/07/2010 15:51:16 | Tópico: Crónicas

Se soubesses, provavelmente os meus segredos, talvez estivesses devorada pela curiosidade de saber mais. Mas não sabes nada nem imaginas o que recordo quando pensava em ti. Os tempos eram outros, bem sei, mas a vontade era a mesma que hoje circunda o meu corpo. Os olhos esbugalhados no teu discurso acanhado ou na tua forma feminina de brincar com as outras meninas. E quando chegava a hora de nós, os rapazes, nos juntarmos para jogarmos ao bate pé, para ganharmos um beijo das meninas, centrava-me em ti e concordava com todas as parvoíces ditas pelos outros colegas, excepto se algum fosse teu pretendente também, e nessas alturas nenhuma bola me afastava daquele parque do recreio da escola. Mesmo que chovessem convites para jogar à bola. Já nessa época fazia planos e imaginava-te de mão dada comigo a correr os campos de trigo, o vale do silêncio ou o parque Eduardo VII.
Do que gostava mais, era de ver-te tão bela e cristalina como eras. Olhos de alegria, uns ténis brancos e um vestido rendado, em que por vezes era o vermelho e noutras vezes o branco, onde o sorriso captava os olhares e tu, meio tímida, reunias as tuas amigas para começarem novas brincadeiras. Imagino que me vias a olhar-te, mas fingias sempre que não davas conta de que estava por perto, mesmo quando as outras meninas segredavam-te e de soslaio olhavam para a zona onde permanecia estático, debaixo de uma árvore companheira que fazia uma sombra amiga. Só tu não olhavas. Lá estava só, tímido e ignorava todos os apelos para ir jogar pela selecção da escola. Só aceitava quando tu seguias com as outras colegas para o pavilhão da escola para apoiarem e verem a malta ganhar às selecções das outras escolas. Vocês eram uma claque organizada e belíssima que intimidava os nossos adversários e em simultâneo nos dava alento e asas, para voarmos quase por magia, para uma vitória incontestável.
Sei bem que adorava jogar, mas isso fazia-o todos os dias na escola ou no meu bairro, mas a oportunidade de estar perto de ti, mesmo longe, não era algo que deixasse ao acaso. Por vezes, parecias-me uma daquelas bonecas de porcelana, em ponto gigante, que a minha mãe tinha em casa a decorar os móveis da sala e em que nos proibia de tocar-lhes para que não às partíssemos. Comparava-te e achava-te bem mais bonita.
E um dia segui o meu caminho, porque o tempo obrigara-me a crescer, a pensar noutras aventuras e a querer consolidar um modo de vida. Perdi-te nesse momento. Terás seguido o teu caminho também, sem nunca ouvires da minha boca um elogio, dos mesmos que te dava com o olhar, naquela troca de mimos só nossos, que inventávamos num tempo inconsciente e bastante fugidio.
Hoje tudo são recordações. E o meu segredo és tu, juventude, que busco para afagar os medos e os instantâneos vagarosos que preencheram os meus passos, depois sirvo-me de pequenas doses, de pequenos episódios e regresso à normalidade atirando pela janela essa estranha comoção. De ti nada mais sei.



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