Retrato da memória [5]

Data 29/07/2010 16:07:59 | Tópico: Textos

Fiz a mala com alguma antecedência, movida pela ânsia que me tolhia o pensamento perante a perspectiva de uma liberdade ainda que utópica, mas que eu desconhecia...
Parti ao anoitecer de um dia que me ficou marcado para sempre. Não é que me lembre que dia era ao certo, mas pelo significado daquilo que considero ser um vil abandono na hora da morte.
Ferido numa bulha feia de machos pelo direito de acasalar com uma certa fêmea que por ali andava com o cio, apareceu-me em casa com uma pata a arrastar. Curei-lhe a ferida como podia, se bem que o buraco era enorme... e sem saber o que mais fazer que lhe devolvesse a vida ou pelo menos lhe aliviasse as dores da infecção que lhe devorava a carne, agonizava há vários dias numa cama improvisada no meio das aparas de madeira a um canto da oficina.
Bem que lhe vi a súplica no olhar triste e na mudez do miar cujas forças já não lhe permitiam soltar mais do que um ténue e quase inaudível ronronar, quando lhe passei a mão pela cabeça naquele que seria o derradeiro gesto de carinho dos tantos que havíamos partilhado e que agora, qual ingrata criatura sem sentimentos que tão miseravelmente o deixava ao abandono das mãos da cruel injustiça que lhe tinha varado o destino.
No dia seguinte a notícia chegou bem cedo pelo telefone: - O teu gato morreu!

Chama-se rafael o gato que vive cá em casa vai para dezasseis anos e é um sósia perfeito daquele outro que nunca me abandonou o pensamento. De certa forma é como se nunca tivesse morrido...




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