Campo de Batalha (Tomaz Kim)
Data 15/08/2010 01:35:59 | Tópico: Poemas -> Reflexão
| 1.
A noite, porém, rangeu e quebrou:
Viajantes clandestinos, à procura de uma estrela mais distante, quedaram-se emudecidos.
Apodreceu a carne, rangeram os ossos e os dias escorreram, viscosos, iguais.
Estéril, a vida continuou: a fome, a peste, a guerra – a morte!
2.
Secam as fontes e os rios, ardem as searas e a nossa casa e as árvores nuas amaldiçoam o céu, sem sabermos porquê.
Morrem os jovens antes de se amarem e os poetas com os poemas inacabados e as crianças olhando espantadas para o céu, sem saberem porquê.
Um vento noturno deixou insepultos ventres e seios e desejos de maternidade nunca realizados, e secou risos e cantares subindo para o céu, sem sabermos porquê.
Andam as guerras pelo mundo: somente possuímos uma voz, uma voz e essa voz não se calará e nós sabemos porquê!
3.
Antes da metralha e do medo e da morte, antes de um corpo jovem, anônimo, apodrecer esquecido à chuva e ao vento, ou singrar, boiando, na água mansa, ou se despedaçar contra o céu indiferente...
Antes do pavor e do pranto e da prece, um adeus longo e triste aos poemas no fundo da gaveta, e à renúncia ao teu amor brando e às noites calmas e ao sonho inacabado...
Antes da morte sem-mistério, um adeus longo e triste à luta de que não se partilhou!...
4. Longe, a bala rasgando o luar; longe, o corpo caindo; longe, o sangue, vermelho e morno e espesso.
Aqui, à face desta lua e da noite, iguais às outras luas e às outras noites, iguais como o sangue vermelho e morno e espesso dos homens ...
Aqui, oculto e surdo e retido, o sangue, vermelho e morno e espesso, igual!
5.
As feridas abrem-se para o céu distante na sua impassibilidade e destilam as sete pragas que desabaram sobre o ventre das nossas mulheres e o sonho dos nossos filhos e a nossa seara e olival.
É da glória que nascem os vermes; e as estrelas, de mil pedaços ensanguentados, subindo a noite vertical!
6.
Esta carne envilecida e santa, a gerar os prados e a nuvem e a chuva, levada pelo sol e pelo vento...
Esta carne envilecida e santa, apodrecendo em todas as latitudes, presente na angústia da noite devastada...
Esta carne envilecida e santa, forçada a negar a verdade pressentida, ecoando os versos dos poetas desconhecidos...
Esta carne envilecida e santa, abrindo-se em flor aos quatro cavaleiros, é o homem e a vida breve!
Tomaz Kim, poeta português, no poema que retrata os horrores da guerra, escrito em 1949. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores.
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