Ferra aqui que eu deixo!

Data 03/11/2010 20:32:11 | Tópico: Crónicas

Na verdade hoje tenho pouco a dizer.
Estou a chegar do confesso e sinto-me leve.
Pelo menos poupei na consulta que tinha no psicólogo.
O padre tem a bendita paciência para escutar histórias macabras, coisas de puta madre, enfim, a minha vida de trás para a frente, tipo fita americana.
Tento manter este elo de ligação entre o chão e o céu, sabe-se lá o dia de amanhã e, entre o sim e o não, prefiro o talvez quem me ajude.

O padre já se habituou aos inúmeros pecados que, gentilmente, faço desenrolar tal como uma lista de compras. Peco aqui, peco acolá e depois, salda-se os pecados todos com umas ave-marias muito à minha maneira, ao meu estilo meio “analfabruto”.

Se há pessoas que sabe que a Zélia anda a marchar comigo às sextas é o padre Sintra, está a par de tudo, até dos ataques que ela tem de ninfomaníaca quando ao telefone me diz: «ferra aqui que eu deixo».

Depois, dá-me lições de moral a troco de umas moedas na caixa de esmola.
É justo.
Cada pecado tem um preço e não vale a pena pedir rebaixa. A vida é assim, uma simbiose entre uma pedra e um pau.
E foi assim que começou o mundo, à pedrada e à paulada, não é verdade, caríssimos irmãos?
Na escola dão-nos rebuçados se portarmo-nos bem, em graúdos dizem que os rebuçados fazem mal aos dentes. Sinceramente, já não sei em que ponto hei-de ficar, se a chupar rebuçados ou dar a chupar.

Isto foi um aparte, aliás, são os apartes que enchem uma história, um namorico, um amor sério. As estrelas não me inspiram sequer uma canção, mas a Zélia sim, quando ela quer leva-me ao cume do cume, sem grande esforço de ancas, diga-se de passagem.

Tenho ido aos ninhos mas não tenho a sorte.
Da última vez, convidei o padre Sintra para que fossemos os dois dar uns tirinhos lá pela mata. Logo se fez disponível e fomos num sábado de manhã, ambos bem equipados. Dentro dos fatos parecíamos duas alfaces, de caçadeira aos ombros.

Os melros nesse dia pareciam estar de folga, pois nesse sábado, ó diacho, é que nem melros, nem perdizes, nem nada.
O céu estava vazio.
Pássaros, só um papagaio azul, que mal sabia se pertencia à terra ou ao céu. Apanhamo-lo junto ao ribeiro, estava a molhar o bico. Meti-o logo numa gaiola.

Ainda assim o dia foi proveitoso, deu para conversarmos bastante sobre o país, sobre as gentes da aldeia, sobre a Zélia…, as habilidades que ela tem…, enfim, conversas de homens, onde se falou de tudo menos de putas, como é óbvio, visto que, padre que é padre, tem sempre más lembranças.

Metemo-nos no jipe e deixou-me à porta de casa. Depois de um dia grande só queria era cama. Estava como um abade. Barriguinha cheia, alma serena, a Teresa Salgueiro, com aquela voz de bezerro à nascença, no aparelho a embalar-me. Para coisa ficar completa uma queca vinha mesmo a calhar. Não foi possível porque a solidão não baixa as calças a ninguém.
Passei a noite toda a sonhar com pássaros.
Na minha mente, pássaros.
No meu corpo, pássaros.
Era pássaros aqui, pássaros acolá.
Houve uma altura que disse bem alto, porra para tanto pássaro e nenhuma gaiola!

Amanheci com uma vontade esotérica de desabafar lágrimas secas com alguém do sexo oposto.
A Zélia deixou de dar notícias, o que achei estranho, pois já passaram três sextas-feiras e não deu sinal nenhum.

Antes que entrasse por vias de depressão, peguei na bicicleta e fui à casa da Zélia o mais rápido que pude. Bati à porta as tais cinco vezes seguidinhas e ninguém respondeu.
Sei que Zélia tem um feitio filho da polícia mas não é pessoa de desaparecer assim do nada. Dei duas voltas à casa e tudo na mesma: a casa sem sinal de vida.

Pelo caminho alguém disse tê-la visto na igreja, que já nem parece a mesma, convertida na fé e nos braços do Senhor. E de facto sim, mal olhei a cara da Zélia, nem parecia a mesma, olhos vidrados nos santos, de joelhos no chão, a rezar com a devoção de um povo inteiro.
Aproximei-me. Nisto, o padre Sintra tocou-me e, num bafo de voz, disse-me:

- Deixa-a estar, Bilinho. Está no silêncio da sua oração a trilhar os seus caminhos. Ela sentiu o chamamento…

Pensei, quem diria. Mas não deixei trespassar o pensamento, guardei-o naquela gaveta da memória onde eu e a Zélia, juntos, fizemos boas transpirações.

Ao regressar lembrei-me em passar rente ao muro da casa do padre e pegar numas amoras que cresce para o lado de fora. Ouvi uns barulhos, uma voz a chamar. Resolvi subir o muro e pus-me à coca.
Era o papagaio. Quem o viu e quem o vê. Estava gordinho o filho da mãe.
O papagaio dizia umas coisas que eu queria entender.
Então, subi ainda mais o muro, mas com cautela, pois sobre ele tem duas fileiras de arame farpado.
No ponto alto do muro, escorreguei para o lado de dentro, bati de cu no chão e fiquei num oito. O papagaio bateu asas, como que aplaudindo, o sacana, fazendo troça de mim, ao mesmo tempo que dizia naquela voz telecomandada:

- Ferra aqui que eu deixo! Ferra aqui que eu deixo!

O padre apercebeu-se e falou:
- Quem vem lá?

Desta vez fiquei calado.







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