Carta a mim mesma

Data 27/09/2011 22:24:52 | Tópico: Mensagens

Lisboa 06 de Novembro de 2010

03.35h

Olá companheira!
Tenho a certeza de que neste momento se esboçou um sorriso nesse teu rosto já muito enrugado mas ainda com traços das feições com que te conheci e que fui acompanhando em segredo com a cumplicidade do teu espelho onde te miravas de vez em quando e ias descobrindo em silêncio as mudanças que a passagem do tempo ía operando em ti, devagar mas a preceito. Nunca te ouvi queixar pois sabia-te jovem, por vezes até criança, no sentir. E no fundo, era isso que realmente importava. Foste jovem por toda essa vida fora, tenho a certeza disso!
Lembras-te de quando fizeste 30 anos e da tristeza que se abateu sobre ti nesse dia? Tonta!...
Nem te passava pela cabeça o que a vida te tinha reservado e o que de bom e de menos bom te viria a oferecer. Viveste mais em meia dúzia de anos do que tinhas vivido numa vida inteira.
Aprendeste com os teus próprios erros, remendaste o que pudeste e o resto para o qual não tinhas nenhum remédio de efeito rápido e eficaz, foste deixando andar até que o tempo curasse. E curou mesmo!
Tinhas sonhos como qualquer outra pessoa. Alguns não passavam disso mesmo, de sonhos...
Mas outros viste como se foram realizando e fazendo de ti uma mulher mais segura, mais madura, mais digna do respeito dos outros e do seu amor próprio. Ganhaste confiança em ti mesma e aquilo que admiravas nalguns e que erradamente julgavas nunca seres capaz de alcançar, certo dia bateu-te à porta e surpreendeu-te.
Também te vi chorar muitas vezes. Mas no fim sentias-te aliviada. Lavavas o rosto e voltavas com aquele teu sorriso tão característico, com as tuas impulsivas e sonoras gargalhadas, como se nada tivesse acontecido, pronta para enfrentar um novo dia sempre acompanhada da esperança, que, apesar de tudo, nunca te tinha abandonado. Talvez tenha sido ela mesma que te deu forças para ir aguentando o barco que se debatia contra as tempestuosas marés que te assolavam a existência.
Criaste um filho que a certa altura se virou contra ti e tu nem sabias o porquê, ou se calhar até sabias mas preferias acreditar que era próprio da idade. O que tu sabias, isso sim, era que não merecias aquilo que ele te dizia e que te deixava arrasada. Mais tarde acalmou e revelou-se afinal ser aquela pessoa doce, meiga e dona de valores imprescindíveis que lhe foste incutindo ao longo do tempo, desde a infância, moldando-lhe o carácter; no fundo, soubeste criar uma pessoa de bem. Mesmo quando, revoltado, se virava contra ti, procuravas sempre dar-lhe razão em qualquer coisa de modo a que te pudesses orgulhar do filho que afinal era teu, que era sangue do teu sangue.
O que tu não esperavas, era que te acontecesse encontrar alguém importante com quem partilhar o resto da vida, bem sei, já estavas tão habituada a que ninguém se aproximasse de ti com esses propósitos, que te foi difícil acreditar que era realmente verdade e que os sentimentos também podem nascer de um inesperado acaso... nunca ninguém te viu tão feliz como passaste a ser e a fazer questão de o mostrar. Acho que só aí conheceste o verdadeiro amor. Aquele que não se esgota como a paixão. Que vai ardendo em lume brando.
Se me estiveres a ler, é sinal de que estava certa no instante em que me ocorreu escrever-te esta carta a ti mesma, para te ser entregue expressamente no dia do teu 80º aniversário e que fosses tu própria a lê-la. Se assim for, é porque a operação que te fizeram ao olho direito há 43 anos atrás (numa altura em que te movias já com dificuldade por entre as brumas de um denso nevoeiro) e que de certa forma te deu uma vida nova, foi um verdadeiro sucesso. Se fosses crente, não hesitarias em chamar-lhe um milagre. Abençoado seja o tal médico que te operou!

Parabéns pelo teu aniversário, desta que daqui te escreve hoje, num futuro imaginário, mas que pode muito bem vir a ser verdade!





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