
a falta que a cruz faz à cidade em que ela jaz
Data 18/11/2010 03:18:07 | Tópico: Poemas
| se esta cruz que aqui tendes (e que é mendes) agora se for embora a cidade continua pela minha e a tua rua qual gato preto que mia sempre escuro a qualquer a hora
e a cruz vai-se
a cada noite a cada dia
ninguém a chora
a de ontem já cá morreu a de hoje ninguém a via
a do futuro... quem a sabia?
mas se aquela outra faltar
- aquela que está no altar -
notarão bem a diferença:
terá sido um roubo à igreja um sacrilégio e uma ofensa.
talvez até no jornal se note um obscuro sinal cheio de simbologia:
faltará aquela cruz na clara página (bem vista à luz) da negra necrologia.
Cruz na Porta
Cruz na porta da tabacaria! Quem morreu? O próprio Alves? Dou Ao diabo o bem-estar que trazia. Desde ontem a cidade mudou.
Quem era? Ora, era quem eu via. Todos os dias o via. Estou Agora sem essa monotonia. Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria. Um ponto de referência de quem sou Eu passava ali de noite e de dia. Desde ontem a cidade mudou.
Meu coração tem pouca alegria, E isto diz que é morte aquilo onde estou. Horror fechado da tabacaria! Desde ontem a cidade mudou.
Mas ao menos a ele alguém o via, Ele era fixo, eu, o que vou, Se morrer, não falto, e ninguém diria. Desde ontem a cidade mudou.
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa
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