MARIO QUINTANA E EU

Data 25/11/2010 18:03:32 | Tópico: Poemas

Tímido, diante do ídolo, este repórter pergunta:
- O poema é como um copo d'agua bebido no escuro?
O poeta retruca:
- Não. Todas as definições que dei foram para me ver livre dos perguntadores: a poesia não se entrega a quem a define.
(Do meu primeiro encontro com Mario Quintana, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo)

Meu primeiro encontro com Mario Quintana, o Mario dele não é acentuado, foi pouco amistoso. Eu era um menino, começando no jornalismo. O velho Diário de S.Paulo incumbiu-me de entrevistá-lo, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, onde o poeta de A Rua dos Cataventos veio para uma série de palestras.
Era julho. Fazia um frio danado em São Paulo. Eu já tinha Quintana como um ídolo. Quando acabou sua fala, bloco e caneta na mão, aproximei-me do poeta. Mas ele recusou a entrevista. Minha cara caiu. Achei-o um velho arrogante, dentro de seu terno surrado.
Mas Mario também era jornalista. E eu o lembrei disso, no elevador da biblioteca. Disse-lhe da admiração que tinha por sua obra e até arrisquei a dizer o primeiro quarteto de seu famoso soneto Da Vez Primeira: "Da vez primeira em que me assassinaram/Perdi um jeito de sorrir que eu tinha/Depois de cada vez que me mataram/Foram levando qualquer coisa minha..."
Mario concordou em responder perguntas rápidas. E foi no saguão da biblioteca. Uma delas:
- Por que o senhor nunca se filiou a nenhuma escola literária?
- Porque o perigo de entrar num barco coletivo é que todos naufragam ao mesmo tempo - ele respondeu, com sua ironia de sempre.
Salva a matéria, escrevo meia página. Dia seguinte, toca o telefone na redação. Dizem que Mario Quintana quer falar comigo. Nas redações, as brincadeiras de mau gosto entre colegas sempre existiram. Mas fui atender. Era o próprio poeta. Ligou-me para agradecer da matéria. Foi quando entendi que o não inicial da entrevista, não era arrogância, mas timidez.
Anos depois, Quintana e eu nos encontramos na Bienal do Livro, no Parque ibirapuera, em São Paulo. Ele lançava o seu Esconderijos do Tempo. Eu, um estreante, lançava A Mímica do Vento. Trocamos os livros. E fomos para o café. Ele tomou café, fumou seus incontáveis cigarros. Eu, vários conhaques. Na hora de pagar a conta, ele não permitiu que eu pagasse:
- Deixe que um poeta velho pague para um poeta novo.
Trocamos correspondência até ao final da vida dele. Mas depois desse encontro não nos vimos mais. Olho meu rosto no espelho e descubro que o poeta novo também já está velho.

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júlio



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