a cómoda incomóda

Data 26/11/2010 14:46:52 | Tópico: Textos

a cómoda, bem acomodada e enraízada na casa, iludia toda a perturbação.
encostada à parede jazia inerte e ocultava a grande brecha escondida por detrás de todos os objectos que a enfeitavam.
em cima dela,um cinzeiro sempre limpo,passepartous escolhidos a dedo,dois castiçais com velas brancas nunca acendidas,um pequeno sino intocável,algumas caixas decorativas vazias,nenhum pó visível,uma imagem de santo em madeira nobre.

todas as gavetas permaneciam fechadas com pequenas chaves nunca usadas para abrir.nenhuma utilidade aparente lhe era dada que não fosse de ordem estética,mesmo que de duvidoso e relativo gosto.

na verdade, a cómoda parecia cumprir uma função: a de ocupar um espaço de segurança,mesmo que ilusório.tudo parecia preferível ao pesadelo do ter que olhar a brecha oculta no meio de um espaço nu.

estranhamente,aquela cómoda sempre me incomodou. entrava na casa e sentia-me asfixiar por ela.como se o seu peso e importância fosse o meu próprio pesadelo visto ao espelho que lhe morava por cima,limitado por uma moldura dourada, rocambolescamente trabalhada .

sempre que entrava em casa encolhia-me para a contornar e tentava aceitá-la como mais uma circunstância perante a qual me sentia pouco mais do que impotente:
cómoda incómoda,por assim dizer.



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=162876