UM HOMEM SOB AS RODAS DE UM ÔNIBUS

Data 29/11/2010 16:18:42 | Tópico: Poemas

"E agonizou no meio do passeio público.
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego."

- Chico Buarque de Hollanda, Construção -

Pouco antes do meio-dia, de volta ao prédio onde moro, ouço uma freada brusca. Saio à janela e deparo com um homem debaixo de um ônibus, agonizando.
Na pracinha em frente ao prédio, há uma base comunitária da Polícia Militar. Os policiais dessa base até que são simpáticos comigo, apesar de minhas desavenças com a polícia. Desço para ver o homem acabar de morrer. Nunca perdi a curiosidade do jornalista, mesmo diante do macabro.
O policial que está ao lado do corpo e que vai cobri-lo com folhas de jornal, me diz que é um morador de rua.
Não gosto da expressão morador de rua. O correto é pessoas em estado de rua: ninguém mora na rua porque quer. Mas vou vendo que aqui neste meu país a população de rua cresce cada dia mais. Há uma cobertura embaixo do prédio onde moro que durante a noite se transforma num verdadeiro albergue noturno. São homens derrotados, bêbados, mas que não perturbam ninguém. Querem apenas o direito de dormir. Talvez o homem que acabou de morrer atropelado seja um deles.
Eu olho tudo isso impotente porque não posso fazer nada. Mas lembro e digo comigo os versos de um poema do grande Ferreira Gullar, o maior poeta brasileiro em atividade: "A noite ocidental/Obscenamente acesa/Sob o meu país dividido em classes."
O homem atropelado certamente será enterrado como indigente numa vala rasa. Mas o que isso importa? Deixou uma mancha de sangue no asfalto. Pode ser que a primeira chuva forte a apague.
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júlio


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