
A noite tem pele
Data 04/12/2010 00:09:52 | Tópico: Poemas
| A noite tem pele, talvez no Inverno tenha rugas, esta história foi contada pelo patriarca Jacinto ás crianças do acampamento. - A noite é escura como a nossa pele dizia ele olhando o pequeno João o mais novo dos ciganos. - A noite não gosta de tomar banho, é como os ciganos, ria uma cigana gorda batendo com os pés no círculo da fogueira acesa. - Conte a história da noite! - Já contei vezes de perder a conta. - Você conta sempre diferente. - Conto se comeres o caldo e não esperneares. - Como tudo. - Bem; era uma vez uma rapariga bonita como o sol e que vestia a noite, contavam naquele lugar que ela era a própria noite cobiçada por toda a classe de homens, desde os trovadores, aos negociantes, os homens políticos, os religiosos, todos a desejavam. Desde pequena que estava destinada a um rapaz que tocava a sua viola nas andanças das feiras. - De que cores eram os olhos dela perguntava a pequena Mariana olhando uma dessas revistas cor-de-rosa que a mãe tinha lá por casa. - Eram castanhos. - Castanhos como os olhos das princesas?! - Castanhos como os olhos da terra que é nossa rainha e que nos dá a água e o fogo, a musica suave e os frutos maduros. - Jacinto é um poeta comentou um rapaz que construía caixas flamengas. - Continuando estava ela destinada a ser desposada pelo cigano tocador, o que não era coisa da sua vontade, mas é da nossa tradição. - E o que é a tradição? - A tradição é os príncipes casarem com as princesas e os ciganos com as ciganas. - E qual é a tradição da noite. - A noite, essa que dizem ser da raça cigana vinha descendo a montanha quando encontrou uma velha, ela sabia que ela tinha o poder de mudar os destinos. - Ela não ia casar com o cigano trovador? Perguntou Mariana. - Ia mas o rapaz morreu. - Morreu?! De que doença? - Morreu atingido por um raio enquanto tocava debaixo de um castanheiro. - Nunca mais jogo ás escondidas debaixo da árvore que está perto do rio, o raio pode descobrir-me diz um pequenito com o ranho pendurado no nariz. - O motivo do raio ter caído é que o anjo que faz os casamentos a olhava a ela tão triste que até parecia que o mundo andava em suas guerras e outros males por causa de viver um amor contrariado. O anjo sabia da tradição e sabia que aquela que pode unir pode também separar. Ter de viver um amor forçado parecia a sua sina para o resto dos dias. Então o anjo foi falar com a morte. A morte esta na sua tenda. - A morte vive também numa tenda como nós? - Sim vive numa tenda e é errante como os ciganos. O anjo foi então falar com a morte. - Morte preciso de falar contigo! - Eu não trato de coisas de amor. - Como sabes tu que o que me trás á tua presença são assuntos do amor. - Eu tenho também comigo a sabedoria da vida. - Se tens a sabedoria da vida, deves também conhecer os propósitos do amor. - Eu conheço a prudência das palavras e ás vezes na boca dos amantes há dizeres imprudentes. - Que estás tu a dizer? - Se o amor acontece feliz, dizem que foi a sorte que lhes bateu á porta, se o amor acontece infeliz ou desilude dizem logo que foi o azar, dizem até que o azar casou com a morte. Eu estou presente quando o amor se deixa cair na imprudência de se teimar cego. - Não te conhecia esses dotes para a filosofia! Mas o que eu te venho pedir é que resolvas este enigma que me trouxe a ti. - Dizem os homens que eu sou um enigma que eles não conseguem resolver e tu o anjo do amor vens pedir-me a mim que resolva o enigma do amor, por certo tão difícil como o do amor. - Tu sabes que trago sempre comigo um arco e um punhado de flechas, conheces a minha certeira pontaria... só que eu não consigo unir o que a vontade da tradição quer separar. - Quem é que quer separar quem? - Uma rapariga cigana que dizem parecer a própria noite está destinada a casar com um jovem cigano tocador das feiras. - E ela não quer... - Não, ela ama um velho artesão. - Sim! - Tu podias arranjar uma morte ao rapaz. - E como posso eu fazer isso?! - Tu és a morte. - É verdade mas vai-me faltando imaginação. - Isso não te falta. - Na verdade já não acho o trabalho muito divertido. - Olha! Dá-lhe uma morte num dia em que ele esteja mais inspirado. E então a morte matou o cigano tocador e pôs-se a dançar flamengo. - Se eu conseguisse sempre ver morrer alguém feliz, nestes últimos tempos foi uma lista cheia de gente doente, de guerras e lutas entre religiões e etnias, um ver se te avias de desgraças, nem percebo como consigo comer tanto. De seguida o miúdo com o ranho pendurado no nariz exclama! - A morte é gorda como a minha avó. - É gorda e só come porcarias dizia outro miúdo. - Ó pai Jacinto a morte tem os dentes estragados? - Deve ter, mas continuando a história pergunto se vocês estão a gostar?
- Sim. - A morte que sempre aparece em dias cinzentos resolveu que aquele dia em que o rapaz ia morrer seria um dia de sol. - E depois?! - Depois vestiu a sua pele de um tecido suave como uma nuvem da manhã e suavemente empurrou o rapaz para debaixo da tal árvore e segredou-lhe ao ouvido: - Toca uma música alegre. E o rapaz tocou. A sua música era tão surpreendente que o céu exclamou a sua admiração trovejando elogios e foi então que a morte lhe lançou um raio no mesmo modo de quem lança flores ao palco depois da actuação do artista. - Quando há trovoada é porque Deus comeu feijão pergunta João o mais novo dos ciganos. - Se ele provasse a feijoada que a minha Mãe faz andava sempre a correr para trás das nuvens. - Depois cagava os homens todos. - Mas continue a contar-nos a história! - Aconteceu pois que mal se soube da morte do rapaz todo o acampamento ficou lavado em lágrimas e num tal pranto que se confundia com a brutalidade de uma praga. Durante a madrugada a rapariga, essa que se pensa ser a noite resolveu fugir. Ora sem que ninguém desconfiasse costumava encontrar-se ela ás escondidas com o velho artesão de nome Jeremias. Fugiu ela deixando atrás de si a marca dos seus pés nus no frio da terra. - Pai Jacinto quero fazer uma pergunta disse a pequena Mariana com o dedo levantado. - Faz. - Porque fugiu ela descalça? - Talvez não tivesse sapatos. - Se calhar tinha uns sapatos que lhe apertavam os pés disse em modos de palpite a cigana gorda. - Ela fugiu descalça para não acordar a família. - É verdade foi o que se passou mesmo. A moça fugiu pois com o tal do velho artesão, ele fazia sapatos e roupas de pele capazes de aquecer a terra e fez para ela umas roupas abençoadas com o calor do sol. A viagem que eles iam fazer era uma viagem perigosa, não por causa dos bichos selvagens que iam encontrar, não por causa dos salteadores pois eles eram pobres, possuindo apenas o amor que para as pessoas da aldeia era incompreensível. O perigo daquela viagem era o ódio que se tinha acendido na família do rapaz da nossa raça que pretendia castigar a noite essa cigana ainda hoje errante e amaldiçoada. - Mas é ela que faz dançar o nosso povo diz o rapaz que faz e que toca as caixas flamengas. - Faz dançar as criaturas e influencia os movimentos da mulher quando vai parir. De repente fez-se uma pausa, uma rapariga cigana que tinha ficado até ao momento calada pergunta se ela a noite era virgem. - Sim, se não o fosse não podia ser prometida ao cigano bailador. - Ele não era só tocador?! - Era tocador e bailador. - E que aconteceu por ter fugido com o velho artesão? - O pai do rapaz chamou á sua presença dois rapazes novos e corpulentos, faziam eles contrabando de tabaco e andavam sempre com duas pistolas á cintura, um deles tinha os dentes forrados á ouro e quando ria encadeava os olhos a qualquer que por ali passasse. O pai do rapaz disse numa voz firme e autoritária: - Procurem o artesão e tragam-no até mim! - E se a encontrar-mos a ela que fazemos? - Rasguem-lhes as roupas e tragam-nos nus. - Com o frio que faz vão ambos morrer falou um dos rapazes. - Façam o vosso trabalho! Quando estiver feito dou-vos dois sacos de moedas de ouro. Todo aquele dia andaram á procura deles, levaram pois dois cães do melhor que havia na arte de encontrar. A rapariga e o velho artesão estavam dentro de um buraco de terra e parecia que aquele esconderijo era tão secreto que parecia ate ser desconhecido do mundo. Ao longe ouviam-se os latidos dos cães, de repente o grande buraco de terra iluminou-se e á frente deles apareceu o cigano bailador erguendo os braços ao alto e entoando óles. - Bons dias senhorita. - Em nome de Deus vai-te embora. - Venho em nome de Deus para vos proteger - Vai-te embora! - Sei que sois perseguidos, o meu pai enviou dois jovens para que fosseis capturados e trazidos nus á sua presença, eu com a minha musica provocai-lhes tal encantamento que agora seguem eles a estrada do bosque nús como dois parvos da aldeia. - Porque razão me perdoais!? - Que crime foi o vosso? - Talvez o crime de não vos amar, mas o meu coração bate por Jeremias. - Não me amais, mas não és minha inimiga - Não sou inimiga de ninguém... que má fortuna a minha. Andar a fugir da própria família e ter agora o destino mais incerto que antes. - Posso tocar para vós. - Sabes alguma canção Bretã perguntou Jeremias esfolando uma ovelha que tinham encontrado no bosque quando iam a poucos dias de caminho. - Conheço esta canção. E o rapaz tocou uma música Bretã e o velho artesão ia batendo com os dedos na terra e as palavras saíam como fumo das chaminés: ela é a noite e eu sou o seu velho trovador. E o refrão repetia-se. A seguir ouviu-se um barulho de um ramo a mexer-se. A rapariga, o velho artesão e o fantasma em carne e osso do cigano tocador levantaram as cabeças para o céu que se via daquele buraco destapado e viram a sombra de uma raposa a correr. O sol que brilhava fazia reflectir na sua pele a cor vermelha que depois era projectada no tronco das árvores e nas nuvens que deslizavam com o vento dando cor á água e ás canções da infância. - Hoje aprendi uma canção nova na escola disse a pequena Mariana. - Que canção aprendeu perguntaram as outras crianças? - Aprendi aquela que diz assim: a noite estava escura, não havia luar, ouviu-se ao longe um cucu a cantar. O resto já não me lembro. - Prosseguindo, quando a rapariga e o velho artesão se encontravam no fundo do grande buraco da terra não havia lua. - Quer dizer que estavam ás escuras atirou á sorte o rapaz cigano que sabia fazer caixas flamengas. - A luz que havia era a que havia nos olhos dela, a paixão vocês deviam de saber pode destapar toda a escuridão e a lua que não estava visível no céu estava dentro dela assim como um pássaro dentro da liberdade. - Pai Jacinto quanto tempo estiveram eles na profundeza daquele buraco. Se fosse comigo ficava cheio de medo, podia encontrar uma cobra ou um espírito. - Se fosse bonito como o cigano tocador. - Como sabes que o cigano tocador era bonito perguntou o rapaz á pequena Mariana. - Devia ser, se fosse feio não morria com música. - E como é que morria? - Morria a ver a sua cara reflectida no lago, uma cara verde como a de um sapo. - Há sapos bonitos! - E há sapos que fumam - A rapariga, ou aquela que diziam ser a própria noite achava-o a ele muito bonito, mas não é isso o que decide a paixão, o reflexo da água ama o sapo feio porque lhe vê o coração e porque a natureza tem aquele batimento que é a vida. - A vida é uma mulher? - É uma feiticeira. - E que feitiços faz? - Muda de forma. - Como?! - Um dia é homem outro mulher e outro água do mar e outro ainda luz do fogo. Mas seguindo com a nossa história os dois jovens ciganos que tinham sido mandados em perseguição dos dois amantes corriam agora nus por aquele bosque. A sombra deles era visível na pele da raposa. Depois de algumas horas de corrida parece que tomaram noção do estado que a nudez deles evidenciava. - Que fazemos assim nus? - Não sei. - Parece um sonho estranho! - Que frio!... Acho que vamos morrer. - Vamos fazer fogo! - Com o vento que faz não sei se vamos conseguir. - Enquanto estavam neste diálogo á frente deles estava a raposa com a sua pele vermelha. - Tirem-me a pele ordenou ela. - Estamos mesmo doidos, será que foi alguma coisa que comemos. - Lembro-me de ter comido só uma maça que apanhei no caminho. - De seguida junto a eles estava uma formosa mulher envolta num manto, eles viram-na a despir-se e a lançar bocados daquele manto para os pés deles. Começaram a vestir o manto, faziam-no de olhos no chão, mal acabaram de se vestir estava ao pé deles uma poça de sangue e não havia nem vestígios de mulher nem de raposa. - Estou com sede disse um deles. - Já não tenho água e o rio ainda está longe. - Podia beber aquela poça de sangue. - Parece da cor do vinho. - E eles provaram? Perguntou a cigana gorda - Provaram. - E a que é que sabia? - Um deles disse: sabe a vinho quente. O outro pôs uma ponta do dedo na poça e exclamou: - É doce! - Olha agora me lembrei que temos de regressar. - Não me apetece. - A mim também não, nem sei o que vamos dizer ao nosso chefe. - Se contamos aquilo que nos aconteceu não vão acreditar em nós. - E... se dissermos que fomos apanhados por salteadores que nos levaram o dinheiro e as roupas e que foi um peregrino que seguia em peregrinação á terra santa que nos deu roupas e dinheiro recomendado-nos a estalagem de um amigo. - Não vão acreditar em nós; os ciganos não são aceites nem nas igrejas, nem nas estalagens. - Podemos dizer que estávamos disfarçados de religiosos. - Pois! Nem sabemos o que inventar. - E se nós entrássemos no acampamento vestidos como leprosos, assim éramos expulsos e podíamos seguir outro rumo nas nossas vidas. Vamos fazer isso?! - Eu tenho mulher e filhos, sabes, sempre que matei um homem me lembrava que podia estar a matar um pai de família e muitas vezes me lembrava dos meus filhos. - E nunca recuaste? - Uma ordem é para ser cumprida, se eu não cumprisse perdia a honra e o respeito da minha família. - Vamos voltar?! - Se quiseres ir, tu não tens família, podes seguir outro caminho, posso dizer-lhes que te matei. - Estavam eles nesta conversa continuava o patriarca, quando ouviram o som das trombetas. Estavam rodeados dos guardas do rei. - Estão presos disse um rapaz novo que devia ser o comandante. - Que fizemos nós. - São ciganos, filhos do diabo. De seguida um outro soldado segreda algo aos ouvidos do comandante. - Dizem-me que um de vós matou um homem por não vos querer na sua terra. - A terra é de Deus. - Também a vida é de Deus. - Vocês andam a roubar os pobres camponeses e quando não querem pagar os impostos vocês matam-nos, eu tenho na minha conta muitas mortes, mas quase todas foram para sacar o dinheiro dos ricos e para matar a fome aos filhos. - Levem-no gritou o chefe deles. - Que aconteceu ao velho artesão e á rapariga? Pergunta Mariana. - O velho artesão caiu doente, parece que foi atingido por febres altas, suspeitava-se que a peste o tivesse atacado, durante esse tempo a febre fazia-o delirar. Ao lado dele estava a rapariga com o seu vestido longo e negro, o tocador cigano e descendo vinha a raposa num modo de andar elegante, mal pisou o fundo transformou-se numa mulher, a rapariga reconheceu na mulher a velha que tinha o poder de mudar destinos. Ela voltou por momentos á forma de raposa e ia lambendo a testa do artesão com o propósito de lhe fazer baixar a febre. - Ele tinha mesmo peste? Perguntou uma rapariga que era irmã do cigano que sabia construir caixas flamengas. - Julgo que sim respondeu o patriarca. - E como é que ele apanhou o bicho? - Talvez alguma ratazana ou algum enfermo com o mesmo mal tivesse estado naquele lugar deixando o cheiro da doença. - Não sabia que as doenças tinham cheiro! Mas conte! O que aconteceu depois? Ele morreu?! - Morreu. - Coitada. - Pois é, agora estava sozinha, quero dizer que uma parte dela estava sozinha mas por outro lado tinha uma nova família, a velha metamorfoseada de raposa e o cigano bailador que era até aquele momento o seu fantasma protector. Depois da raposa ter arrastado o corpo e ter escavado com as patas uma cova do tamanho de um poço, enterrou o artesão e logo cobriu de terra e humos o lugar. A rapariga estava com ela quando isto se passou e quando a raposa voltou á forma de mulher, ela a convidou a viver na sua companhia e a ser sua aprendiz, lhe ensinaria todas as magias que sabia fazer desde criança. A rapariga que diziam ser a noite perguntou se ela lhe ensinaria a forma de se converter num animal, podia ser um pássaro. A velha que agora se apresentava na sua forma jovem disse-lhe que um pássaro podia ser uma coisa perigosa pois por aquele bosque eram frequentes os caçadores e se ela adoptasse a forma de raposa era mais fácil esquivar-se dos cães e das setas. Contou ainda os seus casos amorosos com os caçadores, eles perseguiam-na como raposa e ela aparecia-lhes como mulher, uma jovem mulher como a água fresca do rio. Depois namorava-os deixando-os loucos e cegos de paixão que se entregavam ás filhas dos reis ou ás estrelas que brilhavam cintilantes no ferro das espadas ou nas gotas de água que caiam da montanha e que na loucura deles pensavam ser uma mulher vestida de terra. - Quanto tempo viveu a noite com a raposa encantada? Perguntaram todos. - Viveram juntas alguns anos, não viviam sempre no mesmo sítio. - E como faziam? - Umas vezes viviam em buracos que os castores cavavam, outras alturas dentro do tronco de árvores velhas e centenárias, também habitavam celeiros abandonados. - E onde é que ela aprendia a magia? - Quando iam á procura de alimento e paravam para comer os animais caçados ou provavam como sobremesa o néctar de certas flores, a mulher assumindo a forma de raposa escrevia com as patas a fórmula das metamorfoses, ela conhecia também a metamorfose das estações. - A Minha avó diz que faz sol quando devia chover. - A tua avó é uma metamorfose diz um rapaz - Olha! Não chames nomes á minha avó que não é para aqui chamada. - Tenham calma! Estava eu contando o modo como viveram durante certo tempo e como a rapariga aprendia com a velha as artes da magia. Alem da arte da metamorfose ela aprendeu a fazer remédios que tratavam algumas doenças e dentro dos frascos onde se introduziam as substâncias de certas flores ou fungos ou ainda o sumo de certos frutos havia um segredo revelado ao homem pela natureza. Acontece que naquele tempo a igreja perseguia todos aqueles que praticassem a medicina popular eram chamados de bruxos e deitados á fogueira. Muitos anos antes a velha costumava andar nas feiras onde distribuía gratuitamente remédios aos enfermos e vendia compotas que ela confeccionava. Pelas feiras andavam os guardas do rei. Certa ocasião os guardas tentaram prende-la e foi graças á magia da metamorfose que conseguiu escapar. Agora não queria voltar ás feiras pois não queria por em perigo a vida da rapariga cigana que embora estivesse aprendendo as artes da metamorfose ainda não dominava com segurança o processo magico. A rapariga cigana que se dizia ser a noite, essa noite que veste os céus e que se fez mulher graças ao desejo dos homens que pedem ás estrelas a realização dos seus desejos de amor impossível, ela que nascera de um ventre cigano e que descobrira nos olhos de um velho artesão o amor universal que não pode estar sujeito a nenhuma lei olhava o buraco escuro onde ele e a mulher que naquele momento tinha a forma animal da raposa que deitada sobre o corpo dela a aquecia. - Uma raposa deve ser quente como uma fogueira - Eu nunca cheguei perto de uma. - Se chegasses podia morder-te - Queimar-me é que não. - Uma raposa pode queimar diz o pequeno João. - Explica lá desafiaram os outros miúdos em coro. - Se ela for a raposa cor de fogo. - A raposa da história parece cor de fogo. - Se a raposa fosse quente como o fogo ela queimava-se e as princesas não se podem queimar diz a pequena Mariana com aquela sua expressão viva nos olhos. - A noite não é atingida pelo fogo, ela é como a água diz o miúdo que andava sempre com o ranho pendurado no nariz. O patriarca cigano resolveu fazer uma pausa pois a noite ia longa e os pequenos precisavam de descansar. No dia seguinte voltou a ele a contar mais um pouco daquela história: - Enquanto a raposa se enroscava no corpo da rapariga cigana o espírito dela viajava em sonhos por lugares que ela conhecera durante a fuga que empreendera com o velho Jeremias, sonhou que era criança e que o pai a embalava e lhe cantava canções de embalar e ela ria-se quando na aldeia lhe diziam que era parecida com o sol e bonita como ele. - Ela era filha do sol não era? Perguntou em duvida um rapaz que estava olhando a sua fisga de atirar aos pássaros. - Era filha do sol que como vocês vão ficar a saber é ourives. - Porque é que ele é ourives? Perguntaram. - É ele que faz os colares e as pulseiras de ouro que as mulheres ciganas usam. - É mesmo assim pai Jacinto? Perguntou Mariana. - Na verdade é uma lenda cigana. - O que é uma lenda? - Uma lenda é a verdade dos sonhos que não acontece sempre na nossa vida. - A história que nos está a contar é uma lenda. - O que vos conto é uma verdade guardada à muito tempo na memória dos contadores de histórias, uma história que atravessou os mares, que entrou nas prisões, que apaixonou poetas. - Conte mais! Pediam os miúdos. - Tinha chegado aos ouvidos de um dos mais famosos piratas que havia uma criatura que sabia fazer o ouro mais valioso da terra, o sol lançou um dos seus raios ao ar que caindo em cima de uma mulher lhe provocou dores de parto e o nascimento de um rapaz que seria destinado a trabalhar o ouro, ouro que tornaria bonitas todas as mulheres e importantes todos os negociantes cujas roupas fossem bordadas a ouro. O famoso pirata desejava encontrar-se com o ourives para tentar sacar-lhe o que considerava ser o segredo mais valioso e a seguir matá-lo. A rapariga cigana acordou e viu que a raposa ou a mulher velha, ou a mulher nova já não se encontrava ali, levantou-se e andou pelo bosque, andou mais um pouco e presa a uma armadilha estava a raposa que daquela vez não conseguira usar a arte da metamorfose e por isso estava com o pêlo esquartejado pelos ferros afiados da armadilha e a boca jorrava sangue. A rapariga ajoelhou-se e chorou, chorou um choro tão forte que se podia escutar o mais longe possível. Agora estava sozinha naquele bosque, não confiava em homem nenhum, dentro dela havia um desejo de vingança, matar aqueles que tinham perseguido até á exaustão do ódio a sua companheira, a sua raposa e velha sábia que conhecia a natureza dos homens e sabia que um dia não ia escapar da única armadilha onde toda a criatura acaba por cair e que é a morte. - Foi a morte que pôs lá a armadilha? Perguntaram as crianças. - Foi a guarda do rei. Nesse dia vestiram a morte e mais tarde haviam de a encontrar. - A história está a ficar triste lamentava-se a pequena Mariana. - Quero dizer-vos que embora tivesse perdido a companhia física da velha que tinha o destino de ser raposa e o destino de ser jovem mulher, todas as criaturas daquele bosque, desde o animal feroz ao animal mais dócil se entregaram ao seu serviço para a fazer sentir que o mais duro da vida é como um vento que pode empurrar de novo a alma para uma nova vida desabrochando sempre a flor do amor. A firmeza de ficar de pé, é a prova de que somos resistentes e que a reafirmação da liberdade é uma luta nossa e da natureza. Enquanto a jovem cigana e conhecida por todas como a mais bela, assim a noite que adormece os homens resolveu ir em viagem os dois ciganos que tinham sido mandados em perseguição da rapariga e do velho tinham conseguido fugir. Ouviram também eles falar do famoso pirata que cobiçava o ouro que diziam ser aquele que sai das mãos do sol e queriam eles fazer um acordo com o tal pirata e sua tripulação. O pirata conhecido com o nome de Vagos costumava parar num bar que se chamava gavião das ondas, bar frequentado por prostitutas, mendigos, nobres que tinham perdido fortunas e que agora exploravam o negócio da prostituição. Os jovens ciganos fugidos da prisão, andavam disfarçados de leprosos para que não fossem reconhecidos. Chegaram ao cais onde ficava situado o tal bar, já sem o disfarce perguntaram quem era o famoso Vagos, o que lhe indicaram uma mesa onde estava ele mais outros da sua guarda jogando á bisca. - Quem é que quer jogar? Perguntou ele num tom resmungado - Nós responderam os ciganos que estavam fugidos. - Tendes dinheiro? Ou querem uma corda á volta do pescoço? - Temos uma informação. - Falem! - Tem que ser em particular. - Levem-nos ao meu navio, falamos lá, espero que seja uma boa informação. Tomem conta deles! - Chefe pode ficar descansado disse um deles. - Eles iam contar o segredo do ouro ao pirata? Perguntou o pequeno João. - Sim e sabem vocês em troca de quê? - Não responderam em coro! - Em troca de uma parte desse ouro... tanto os ciganos como os piratas sabiam da existência do ourives que era o sol na forma humana mas não sabiam onde era a sua morada. Os dois jovens iam inventar que conheciam o sitio e em troca de uma parte do ouro queriam atravessar uma ponta do mar á outra ponta. - Onde fica a casa do ourives? Perguntou Vagos o pirata aos dois ciganos. - Só vos dizemos se nos levarem de uma ponta do mar á outra. - E onde fica isso? - Queremos ir na direcção de outra vida, o ouro que conseguirmos é para mandar á família e pagar a um padre a absolvição dos nossos crimes. - Podem lava-los na água, por aqui há muita e é tão salgada como as nossas vidas riu-se ele. Estava a pensar agora como é que eu sei que essa vossa história não é invenção? - Se não tendes confiança na nossa palavra... - Sois ciganos - E vós sois piratas, vos saqueais as coisas do mar. No bosque continuava a viver a jovem rapariga que tinha feito um juramento de vingança, agora odiava tanto, como tinha amado o velho artesão e a velha raposa que sabia a arte da metamorfose, agora ela que conhecia tão bem aquele bosque tinha um plano para liquidar toda a tropa de caçadores do reino e roubar todos os cobradores de impostos cujo caminho fosse aquele. - E qual era o plano dela perguntou uma miúda? - A jovem pensou preparar um perfume cujos ingredientes eram extraídos de um cacto que existia em volta do buraco fundo onde ela continuava a dormir. Enquanto apanhava umas bagas que eram parte do tal cactos, pediu à águia que a alertasse caso aparecesse algum intruso. Ela queria que aquela operação fosse secreta. Ela ia criar o perfume da sedução fatal, depois espalharia o mesmo nas roupas dos soldados dos reis quando andasse a passear pelas feiras. O cheiro daquele perfume a que ela seria imune atrairia quem o cheirasse para o cimo de uma torre onde se atirariam convencidos que se tinham tornado imortais, outros caminhariam na direcção dos poços e convencidos que Deus em pessoa os baptizava se afogariam nas profundas águas. Levou ela mais de dez anos na apurada escolha dos bagos e outros dez na preparação do tal perfume. Logo que o perfume estava pronto a ser usado ela lançou um assobio frio e logo apareceu o seu cavalo selvagem. Partiu ela ainda muito cedo e a dado momento aparecendo dos ramos altos de uma árvore saltou uma figura uma parte era o desenho de um humano em forma de fogo, um fogo de paixão que ao envolve-la a cegou. - Quem és tu? Que me fizeste?! - Sou aquele que é parte da tua escuridão e sou a parte da luz que tens em ti. A vingança perde as criaturas. - E ela ficou muito tempo sem ver? - Quando fechou os olhos e imaginou que olhava o coração, o que há de mais verdadeiro, os olhos dela abriram-se. Abriram-se os olhos e os braços respondeu o patriarca. - E depois ela apaixonou-se outra vez? - Depois ela assumiu a forma do espaço em volta e quando deu conta, já não era mulher, nem animal, a sua metamorfose era ter conseguido ficar noite. - Olhem as estrelas gritou um miúdo! - Parecem o ouro que os piratas desejavam. - E agora a floresta ficou sozinha pergunta Mariana? - Ela continuava a proteger aquele lugar e quando havia a intenção de destruir aquele sítio os que tentavam ficavam cegos e não conseguiam descobrir o caminho. Anos mais tarde o rei que governava aquela terra foi derrubado e o povo elegeu um cavaleiro cuja espada era afiada de justiça. - E os piratas? Perguntaram todos. - Os piratas ainda navegam, crentes que vão na direcção da casa do ourives que fica situada na mentira dos rapazes ciganos. Na verdade é a loucura que os faz seguir, a loucura e a cobiça e será isso que os irá perder.
lobo
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