Eflúvios dum louco

Data 16/12/2010 12:06:22 | Tópico: Poemas

Numa hora qualquer de um dia qualquer, escrevi




Instável, a vegetação nesta diversidade
agreste
tomba ao pino do meio dia no calor
deste verão infindável
para logo rejuvenescer nas lágrimas
que o outono verte
e tece

É fim de tarde
O nevoeiro cai agora cinzento, pardacento
húmido
espesso e arrepiante
Penetra até aos ossos ancilosados pelo tempo,
o frio

A terra quente há muito se findou…
Para lá do dia abafado ficou apenas
a lonjura
duma distância perdida
no inimaginável da distância,
no gérmen que ainda cálido de nostalgia
arrefece

Inutilmente a manhã na fronte
perde-se em rugas de sulcos fundos
que repousam seus gentis gomos
nos cílios fluviais dos trilhos das margens
duras da vida

Ao lado o rio que corre…
E inutilmente o ciclo que arrefece
comprometido com as ondas insondáveis
dos deuses que esquecidos
se estiram de preguiça ao romper do manto
glacial
chicoteado pelo esquecimento

Ali gesticulam efémeros gestos de prazer
Ali, a dádiva emprenha o ventre virgem
no galopar do vazio do tempo
no dorso do dia que galopa para o interior
da noite que só, álgida se cobre
da ausência da luz

A palidez da lua esquálida estremece
imaginária de tanta realidade comprometida
como a água na nascente da vida
As cinzas, essas diluem-se na aragem do tempo
sem aragem
de mais um dia que se perdeu

O vento magicamente afaga
e desposa a terra virgem e rubra
que em tempo algum cavaleiro andante
conheceu e desflorou
E a manhã na fronte amanhece erguida
já sem prantos nem lágrimas nem luz
nem águas azuis nem liras imagináveis
no galopar do vazio no dorso do dia

Morre o sexo já morto das virgens
sem o prazer de se entregarem
sem o desejo hasteado nos jardins da volúpia
nem gritos
nem ais nem suspiros de sereias moribundas

As imagens difusas viajam na alma de quem a tem
incorporando imagens que maculam o sol
de desejo e se apagam
na devassa da palavra e do verbo

Em surdina os loucos batem-me à porta
e em vão a abro e os deixo entrar breves…
Solícitos
se sentam na imprecisão dos meus dias e no colo
das minhas vertigens
verto eflúvios de louco com eles
e viajo com eles até ao Olimpo
onde músicas místicas como se fossem
divinas
leves pedras soltas de neve
rebolam e se sentam comigo
nas margens imprecisas dos dias

Mordo estes momentos de loucura
sem os enredos subtis da lua cheia
nem as tramas cruzadas das águas ácidas
clarividentes
de loucura e demência

Imagens que um louco guarda de si sem serem de si
vindas de fora imprecisas
como se fossem as chamas geladas
das noites frias
onde os plátanos apodrecidos conspurcam
a placidez das águas
onde se mira o luar da noite sem o advento
do dia seguinte

Invento a música onde não há mais música…
Os bailados que deixam de o ser mesclam-se
com o bambolear ébrio dos vadios esfarrapados
ou das prostitutas envelhecidas prematuramente
que sem êxito
rebuscam afectos onde já não há afectos
nem solstícios breves nem primaveras nem nada

Apenas tramas de alinhadas redes cruzadas
teias, enredos
braços decepados
e a natureza que se derrama em ácidas chuvas
diluvianas, oblíquas
obliquamente diluvianas
na demência dos homens
já sem a clarividência das límpidas águas

Mitiga-me a sede na ânsia de ter
no vácuo
a imprecisão indefinida dos dias longínquos
A ausência prenhe de ser saudade
fustiga-me no eclodir da noite
onde se perdem de si os dias

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in: onde os desejos fremem sedentos de ser



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