SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL

Data 23/12/2010 13:20:53 | Tópico: Crónicas

"Hoje à noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente."

- Vinícius de Moraes, Poema de Natal -

Meus natais nunca foram felizes. Sempre tive tudo, é verdade. Mas jamais me apeteceram as festas natalinas.
Como já disse numa crônica anterior, nessas ocasiões eu me trancava no quarto. E era um deus-nos-acuda pra me tirarem de lá. Não queria comer, não queria presentes, não queria nada. Queria ficar a sós comigo mesmo. E eu tinha apenas seis anos.
Aos sete, por causa desse meu jeito, minha mãe levou-me ao psicanalista. Mas eu não falava com ele. Na mesa do consultório, eu improvisava um campo de futebol de botão e ele ficava apenas me olhando, enquanto eu imaginava um estádio lotado e os craques do meu tempo fazendo mágica com a bola nos pés.
Quando fiz dezoito anos, respirei aliviado. Não tinha mais necessidade de ficar em casa, olhando a mesa farta de comida. É verdade que bem antes da maioridade eu já não ficava em casa, já demonstrando um certo gosto pelo álcool. Tinha passado dois anos interno entre os beneditinos. Quando saí, descontei tudo. Sempre fui de exageros. Até no exercício de amar. Hoje entendo porque sofro tanto.
Já mais maduro e jornalista, fui escolhido para fazer uma reportagem de natal numa favela.
Vibrei com a pauta.
Antes da meia-noite, lá fui eu, acompanhado do repórter-fotográfico Tarcísio Mota, meu fiel companheiro por andanças neste mundo-de meu-deus.
Foi na favela Ordem e Progresso, em Vila Prudente. A comunidade já nos esperava. Havia uma mesa enorme, coberta de papel crepom, ao ar livre. Uma senhora negra, com uma criança no colo, recebeu-me com um beijo na face. Depois,levou-me até o seu barraco e me deu um copo de cachaça. Abriu uma garrafa de cerveja e começou a me contar sobre a rotina da favela.
A cerveja e a cachaça me foram servidas em canecas de alumínio. Nunca vi tanto asseio como naquele barraco humilde. Barraco humilde é redundância, né? Mas lá havia um presépio, feito de papelão. Com tudo o que há num presépio: a Virgem, o Carpinteiro,o Menino. Os pastores, os bichos. Os reis, com seus presentes: o incenso, simbolizando a divindade; o ouro, a realeza; e a mirra, a paixão anunciada. E havia também o anjo, em cima do telhado da estrebaria, com a faixa: "Glória a Deus nas alturas."
Quando saímos para a rua, na hora da ceia, a batucada comia solta. Algumas pessoas já estavam bêbadas. Mas era uma bebedeira santa e feliz.Uma bebedeira de quem sofria o ano inteiro e, naquele momento, tinha um momento santo de felicidade. Por dever de ofício, eu não podia ficar bêbado, embora tivesse vontade. Uma menina me chamou de menino bonito. E acho que eu era mesmo.
Serviram frango assado, porque não havia dinheiro para o peru, farofa e muita maionese com batatas, porque entope mais depressa. Pobre adora maionese.
As crianças se contentavam com bolas de futebol de plástico e bonecas baratas, oferecidas por um empresário da região. O olhar do Menino Jesus estava no olhar de todas aquelas crianças. A pureza da Virgem e a humildade do Carpinteiro habitavam nas mulheres e nos homens. E eu, que nunca cri no Natal, senti uma coisa na minha garganta. Meu amigo fotógrafo, olhou para mim e brincou:
- O repórter duro está chorando?
Não quis dar o braço a torcer e respondi que talvez fosse efeito da bebida.Mas não era.
E comecei a puxar da memória os natais antigos em família. Até constatar que ali, naquela favela, eu vivi e passei o único Natal feliz. O único - até hoje.
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júlio



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