[Incongruências desse meu Viver]

Data 24/12/2010 17:45:29 | Tópico: Poemas

["... Enquanto alguma coisa se mexer, pode saber-se que o tempo passou. De contrário, não. Se nada se mexer é o tempo eterno... Por isso o tempo não passa para o enforcado: porque, ainda que a mão da criança se mexa, ele não o sabe." Gabriel Garcia Marquez - "A Revoada"]

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O cotidiano tem tentáculos — infaláveis raízes miúdas que nos enredam nas coisas e nos outros — por que a inútil insistência em querer saber todo o plexo do vivido? O que eu vivo quase sempre me surpreende...

Há coisas que a gente sabe, sem saber que sabe: nunca me ocorreu constatar [e pensar] que o tempo não passa, não passou para os mortos. O tempo passa sobre os mortos, e não para os mortos. Ou, para eles, o tempo para, estaca-se em infinitude? Sou um físico nuclear — logo, a frase é de se esperar: tempo é movimento — ou dele surge. Será?? Dou-me conta de que no meu âmago, trama-se a morte — as minhas vísceras conspiram — manifestando o tempo, mas sem jamais saber do tempo.

O tempo é movimento [da relação] de mim para o outro: na papelaria, na penumbra da tarde à-toa, a bela moça loira que me atende — mulher grande, mas suave, mãos grandes, mas suaves... olhos verdes, (existem, sim!), vivos, mas suaves como os de uma cobra sonolenta. Olha-me, com simpatia, mas depois, quando nota afabilidade em meu olhar, seu rosto torna-se pesado — olha-me com dissabor.

O súbito pesadume irritado deste belo rosto traz-me a clara noção: sou feio, e o meu tempo passou — cqdeu-se, como qualquer teorema da geometria euclidiana — incongruências desse meu viver... Detesto pensar em resignação — prefiro pensar em partir, só partir...

[Penas do Desterro, 30 de setembro de 2010]


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