O NASCIMENTO DO SOBRINHO DE VALDETE

Data 27/12/2010 19:13:15 | Tópico: Crónicas


Há pessoas que aparecem na vida da gente para, de alguma forma, nos alegrar e nos tornar mais humanos. Esse é o caso de Valdete, minha faxineira. Só a vida dela já forneceria material para uma sensacional história à parte. Mas ainda não será desta vez que a contarei. Estou aqui para falar sobre uma característica determinante da psicologia de Valdete: ela é uma grande contadora de “causos”, como se pronuncia por aqui no interior do estado de São Paulo.

Não é que ela sempre tem na ponta da língua uma história inédita para me contar? O mais interessante é que as suas histórias parecem-me ser produto de fatos bem reais, passagens, momentos pessoais dos quais ela me coloca a par de uma maneira vívida, única, magistral. Tenho cá as minhas desconfianças sobre a veracidade das histórias estapafúrdias de Valdete, mas, da forma como ela conta, não tenho como afirmar o contrário.

Por essas e por outras que não vejo a hora de que a faxina de Valdete comece. Logo que ela chega já me levanto e, como quem não quer nada, vou até a cozinha para puxar algum assunto. São esses os instantes em que fico com todas as minhas “antenas ligadas” porque poderá surgir uma pérola, assim, assim, do nada.

É bom prevenir que Valdete não tem quase que estudo algum. Tudo o que emana dela é natural, espontâneo, límpido, fruto de um modo de pensar e agir instintivos. Ah, pitoresco e natural como Valdete é o seu português um tanto quanto, eu diria, “particular” e “característico”...

Logo que Valdete me viu entrar na cozinha já disparou:

- Ocê num sabe o que aconteceu com a Susete, seu Zé Mano (Zé Mano = Germano)

- E quem é Susete, Valdete?

- Ara sô, Susete é minha irmã mais nova.

- O que aconteceu, Valdete?

- Susete ficou grave (grave = grávida) do marido. Mas Susete é sonsuda, disinxabuda (sonsuda = sonsa; disinxabuda = desenxabida) ela num cridita nas coisa. Desde criança num cridita nas coisa mais certa desse mundo, os tar dos fato comprovado da vida... De bichinha pequena ela já era tupetuda. Pois ocê num cridita, seu Zé Mano, que ela de criança saia no meio das chuva forte e com raio?

- E qual o problema disso, Valdete?

- Pois que ela seja ingonorante eu entendo seu Zé Mano, que Susete num tem conserto, é bicho fidido do mato, mas o sinhô? Pois seu Zé Mano num sabe que quando dá um raio o sapo pula nas perna da gente e crava aquelas unha torta na pele e fica grudado por lá?

- E sapo tem unha Valdete?

- Pois e não tem, sô? Umas unha enorme, preta que nem carvão e ainda tudo torta, as dita cuja. E tem mais: o sapo só vai sortá da perna se der ôtro raio, senão vai ficá grudado por lá... Seu Zé Mano é hôme da cidade e num conhece os perigo da roça... – e Valdete puxou e soltou o ar na forma daqueles suspiros desanimados (talvez por causa da minha absurda ignorância sobre a existência das unhas nos sapos) e continuou – Mas, então, Susete, sonsuda que nem ela, ficou grave, seu Zé Mano, como eu disse e eu já avisei pra ela: “Num anda com as coisa pregada nos corpo que despois nasce as marca direitinho da coisa na pele da criança”. Seu Zé Mano, eu sei que contece com conhecimento di causo. O filho da minha vizinha Rosineide é prova. Pois quando ela tava grave dele, ela descurregou e caiu co’as coxa na escada em cima do vasinho de pranta. Ficou co’as perna roxa uns quinze dia. Dito e feito: Quando o fio nasceu, veio aquelas bruta marca vermeia igual do vaso nas perninha do filinho, tadinho...

- Mas o que sua irmã, a Susete fez? Conta mulher! – Eu já não estava mais suportando os salamaleques e introdutórios da história e curiosíssimo para saber o final...

- Calma seu Zé Mano! Apressadinho, né? Tá, eu conto. A Susete tava andano o tempo todo co’a carteira dela no bolso e eu lá, avisano: tira a carteira do borso Susete, tira a mardita carteira de perto do corpo que seu fio vai nascer co’as marca da carteira na pele. Pois, seu Zé Mano de Deus, o meu sobrinho nasceu anteonti.... Divinha? Num é que veio a carteira pintada bem na cara da criança e até co’as marca do zip (zip = zíper)?

Tive que arrumar uma desculpa para ir ao banheiro para poder rir em paz. Se esse “causo” é verdade ou se é lorota pura dela, sabe-se lá. Se ela tinha ouvido essa história de outro, nem imagino. Vindo da Valdete, tudo é possível.



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=167841