A vida é feita de insólitos

Data 27/12/2010 20:27:20 | Tópico: Crónicas

É noite de Consoada. A magia está no ar. Tudo é perfeito. Será que é mesmo?
A família reencontra-se. Avós, pais, irmãos, cunhadas, filhos, sobrinhos, primos. Para completar a mesa os tios-avós chegam com os envelopes para a criançada.
São 20 os pratos na mesa, o bacalhau traz broa, o perú, seculento, regado com um tinto demarcado, o leitão é da Bairrada. A tia avó senta-se e pede que lhe ponham o babete. O cadeirão faz doer as costas, a almofada não se ajusta, a sopa está fria e salgada. A algazarra das crianças incomoda, a televisão está muito alta...
Quando, finalmente, parece que a idosa senhora está integrada e apenas se ouve o bater dos talheres, porque as vozes a incomodavam, eis que a refeição sagrada é animada pelo barulho de uns gazes desgovernados e inconvenientes. A tia-avó lá se foi justificando:
- Isto não é lá muito bonito! É a barriga da tia!
Entretanto a senhora pede o segundo prato, um pouco de perú, do lado do peito. Enquanto a carne é desfiada, a octagenária saca da dentadura e deita-a dentro do copo da água, colocando-o bem na frente dos restantes convidados que, por pouco, não vomitavam em cima da mesa de espanto e indignação, é que a malta é mais jovem e não queria acreditar no que estava a ver. Pior foi quando pega no copo e começa a beber a água.
Mas a idade é um posto, sobretudo quando a herança promete. Ainda assim, houve vómitos à mistura na mesa da Consoada.
Terminada a refeição a senhora ordenou que baixassem a televisão pois estava na hora de rezar o terço e lá foi encomendando, sobrinho, a sobrinho, um por um, ao seu santo protector.
- Para o ano, meus queridos, cá nos encontramos outra vez!



Maria Fernanda Reis Esteves
50 anos
natural: Setúbal



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