Lesmices

Data 03/01/2011 20:51:50 | Tópico: Crónicas

O dia começava assim adoçicado, envolto naquela leveza, de quem renova a esperança num mundo melhor e havia prometido a si mesma fazer um esforço para, doravante, ser um ser humano mais condescendente e respeitador de todas as criaturas do universo, independentemente da sua raça, credo, côr, ideologia ou condição. Não havia nem preguiça, nem ansiedade, tudo era paz natural, no primeiro dia do ano.
Uma chávena de café acabado de fazer e uma fatia de bolo rei davam as boas vindas a uma manhã chuvosa, mas gostosa, através da janela da marquise. Os vizinhos descansavam ainda dos excessos dos festejos da noite de passagem de ano. Comemorações à parte, eu nunca vou perceber a razão de tanta euforia, afinal, trata-se, apenas, da transacção de um dia para o outro, seja ela feita com tampas de panelas ou tiros de caçadeira, com mais ou menos champanhe, com uma dúzia de passas na mão e um rol de desejos, quase sempre de muita prosperidade material e pouca utilidade para o crescimento interior.
Já o aconchego do café me levava para um êxtase quase poético, quando me apercebo de que, afinal, não estava sozinha. Fitei-a nos olhos, que me pareceram enormes e capazes de me engolir, ali no chão, pertinho de mim, aquele bicho viscoso de cor cinzenta, quase preta, havia tido a ousadia de invadir a minha privacidade, sem pedir licença e sem se sentir intruso. Quase deixei cair a chávena do café, simulando um vómito de nojo, ficando, por breves instantes, sem saber o que fazer. Constatei que a lesma estava estática, talvez ela tivesse tanto medo quanto eu, afinal, modéstia à parte, talvez os meus olhos sejam maiores do que os dela, porque, bem vistas as coisas, eu até nem sei se ela os tem.
Era eu e ela, frente a frente, também, para dizer a verdade, não sei se estava de lado, de costas, ou virada para mim, mas o que é que isso interessa? O facto é que estava ali e eu não sabia o que fazer com ela. Parecia estar num estado de apatia e eu aproveitei e corri a consultar o PC. Lesmas são animais moluscos, podendo ser inofensivos se forem de raça Ibérica e de côr preta, ou até mesmo assassinas, se forem de uma outra linhagem.
Corri a inpeccionar minuciosamente o intruso e o mesmo apresentava-se de uma tonalidade entre o cinzento, sem chegar a negro, mas certamente ou era portuguesa ou espanhola, já que, de tão lesma, não provinha certamente de uma distância maior.
Tomei uma decisão, peguei-a com um guardanapo de papel, com muito cuidado, pois prometera respeitar todo o ser vivente e deitei-a no saco do lixo junto com os restos de hortaliça e cascas de fruta. Atei o saco e fui despejar no lixo. O que importa é que não a matei, o final que lhe foi destinado já me transcende. Estou certa de que teve um grande repasto e eu arranjei forma de não quebrar a promessa de fim de ano.
Sei que não sou santa e há coisas que me tiram do sério. As lesmas estão decididamente entre elas, já que eu sou mais do tipo hiperactiva.
Só hoje já escrevi esta crónica e um poema. Sei que quantidade não significa qualidade, mas podem chamar-me tudo, menos lesma.

Maria Fernanda Reis Esteves
50 anos
natural: Setúbal



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=168872