Recordar um gesto, que fosse…

Data 10/09/2007 13:27:09 | Tópico: Poemas -> Amor

Sem ventos, sem brisas,
os olhos mergulham no vazio insípido das madrugadas,
no oco dos baús ancorados aos tempos,
nos búzios desabitados de carne de moluscos.

A chuva chega,
apaga das paredes caiadas o pó vermelho,
apaga das searas estioladas o cheiro de tardes quentes,
o cheiro das espigas abertas
e a queda humilhada das sementes.

O rio abre-se e acolhe todas as gotas,
todas as notas de uma modulação esquiva
… todas, uma a uma.

O rio cresce, engrossa, cavalga as margens,
corta à naifada a pele cinzenta
das entranhas da terra.
Descasca, descarna os olhos cansados da noite.
Não se cabimenta.

Da planície os sons: salgueiros esguios e solitários,
varejam a tempestade.
Murmúrios de desalento e saudade.
Gritos de chicotes açoitam a negra noite e, contudo,
sem que se conceba,
sem que se entenda a mística suprema da natureza,
abraçam-se.
Enrolam-se em danças evolutivas sem fim,
na clausura das águas,
no fervilhar aragens em deriva.

A chuva chega… o rio borbulha, farto, lato.
O rio é agora o palco.

Recordar um gesto, que fosse…
Um afago títere na loucura de um só instante
delineado em pernas vermelhas de lavagante…




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