Decalcando Espanca

Data 10/03/2011 14:32:24 | Tópico: Poemas

Todas as prendas que me dás, amiga,
Eu guardo num recanto, às escondidas,
E quando não vigia o sol ardente,
Espreito-as e elas saram-me as feridas.

E falas-me de esperança e amizade -
Serão suficientes meus bem-hajas?,
Pouco a pouco o meu pranto faz-se nuvem,
Pouco a pouco o meu riso ganha asas...

Pelo cálice cor e pura luz
Sorvo um sentimento tão cá de dentro,
Que vibro como criança feliz
Quando se solta e corre contra o vento!

Na água onde me espelho brilhas tu,
No 'spelho onde te vejo, vejo a mim,
E da tua imagem recorto rosas,
E da minha sombra, flores de cetim...

E as pedras preciosas que desvendo,
Fio-as em colar, valioso e terno,
Simbolizando estrelas do Universo,
Guiando travessia em mar fraterno.

E de todas as pedras, a mais cara,
Aquela que mais prende a minha alma,
É o teu sorriso, amiga, que pressinto,
Cada vez que em sol se acende esta chama...


Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

Florbela Espanca




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