Que pode o poeta mais senão do que ...

Data 14/09/2007 13:37:49 | Tópico: Poemas

Se os sons se elevam e já são gritos
nas bocas escancaradas das cigarras,
se dos silvados besouros aflitos
entoam fúnebres cânticos
de tarde amortalhada
quando, das minas a água ressoa
em clarividentes gargalhadas de prantos,
e os poetas se escondem em máscaras afuniladas,
mascarando dores em volúpias coloridas,
num jogo de rir de si
e de se sufocar no lamento das risadas,
num incessante lamber de feridas...
nada mais resta do que dilacerar a voz da poesia,
na guilhotina, em postas de palavras,
cada dia mais finas, cada dia mais gastas,
ruas e artérias solitárias,
e percorrer a vida na miséria dissimulada,
na engorda do ventre p’lo jejum
metafórico
de inventar portais e sentimentos e,
na ceva alada dos ventos, dos ventos ocos,
que não movem moinhos,
que não geram farinha,
nem farelo,
nem sequer alforge acirrado
aos uivos dos lobos – destes de que fujo
e nos quais me encontro -, no expurgo, em depuração
e no decante transcendente,
em que o vinho ébrio se fermenta,
ou tão só é mosto escorrente, em bica aberta,
aos veludos enfurecidos
das polpas
dos sentidos.

Se os sons se elevam e já são gritos -
aqui, além e mais ali -,
se não se descortina separação
entre o restolho e o silvado,
que pode o poeta mais senão do que
ser ave afónica em canto descontinuado?




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