Na inutilidade que me perpassa o cântico

Data 18/09/2007 20:11:07 | Tópico: Poemas -> Sombrios

A geometria do verso, do verbo dobrado p’la cintura.

A palavra,
diáfana, pomposa e digna, que nenhum vento apaga,
que se perpétua desenhada nos lábios febris das águas,
em veias e teias d’ amplíssimas gotas…
que se escorre em babas lívidas,
no sal do corpo e nas salivas.

No horizonte,
toalhas onduladas de brancos linhos
erguem-se na vertical dos tempos,
e sobre elas, o perfume solidificado a quente,
em jarras sem flores, de vidro transparente,
diamante de paradoxal fragrância,
da mais oculta loucura,
esta que, espartana,
se agita em laivos efervescentes
em formas esfusiantes e sempre puras.

A solidão dolente
em que descanso no ombro ausente,
em que descanso o corpo,
do açoite, do negrume ácido da noite.

Rasgo as palavras, uma a uma,
apresas entre a língua e os dentes.

Rasgo a alma vagabunda em memórias dilacerantes,
no silêncio do gesto,
a que me ofereço, no rezar de um terço,
sempre aberto, sempre franco.

Na madrugada
esventro-me de ti, palavra moribunda,
verbo-poema, amado amante,
num parto de nado-morto, de rei deposto.

Sou palhaço
num circo desarmado em panos furiosos,
em excessos de prantos e choros,
no eco d’ avisos de sorumbáticos mochos,
às dores,
aos augúrios, prenúncios de cataclismos maiores.

Na inutilidade que me perpassa o cântico melodioso,
o Inverno retorna,
toma forma,
em risadas de escárnio inútil,
de um Sol que é por fim, no mar de mim,
e nesta tarde inebriada p’lo cheiro do mosto,
declínio, ocaso, Sol-posto.



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