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Data 06/05/2011 14:15:15 | Tópico: Poemas

Falta-nos a luz branca das coisas novas. Falta-nos o cheiro da tinta fresca, e o calor da lareira no dia de chuva. Ou o leite levado à cama, os caprichos, as repreensões. O bom e o menos bom. Tudo nos faz falta, quando chega a altura da vida em que percebemos o que é a idade, o que significam os anos na realidade. O Tempo, que não existe. As rotações do universo, dos mundos que existem mas que não vemos, mas que sabemos que existem porque assim nos contaram. Chega a altura em que queremos voltar a tentar voar por cima da videira, a doce videira que nos alimentava os sonhos. Avizinha-se a hora da efémera tristeza, mas tão profunda, de constatar que não sonhamos mais, e que nunca mais poderemos voar por cima da videira, ou de qualquer trevo. As cabanas dos índios, o tempo as levou. As panelas de terra, o tempo as levou. Esse tempo que é um cubo mirrante e que flutua ao silêncio do abate, e da repressão de nós mesmos. Cubo onde cada um de nós se insere. Onde é o aperto da responsabilidade que fala mais alto que a necessidade. E eu pergunto-me porque não senti isto antes. Falta-nos a consciência cega, imune de malevolências, quando sabíamos que a mão era o caminho para as coisas, e mexíamos, torcíamos, esmagávamos todas as certezas, sem o medo da repreensão. Quando ser feliz era conseguir que o avião de papel planasse e ter um bolo para comer na volta para casa. Faz falta a simplicidade de ser apenas porque se é, pois somos complexos, por sermos aquilo que não somos e abominar-mos toda e qualquer hipocrisia. Chega a altura de vestir a farda de segunda-feira, dos dias, que são como os outros, mas que domesticaram. Chega a altura em que a farda, do uso, se apegou à pele, agrafou-se à alma, e confundimos o que somos, com aquilo que éramos, sem saber que não é o tempo o culpado, nem as segundas-feiras, nem os anos. Há quem não vista essa farda, e há quem a vista à força. São gente inconformada, em revolta não se sabe do quê, já que nem eles sabem do que fogem, mas sabem que sabem alguma verdade, e sentem dentro de si que o coração morre aos poucos. São pessoas confusas, sem rumo, ou alguém que os guie no caminho livre e mortal que escolheram. Chega a altura em que há corpos flamejantes que se destacam na multidão carregada do preto ou do branco, da uniformidade e da sentença de prisão perpétua a uma vida com preço de compra e empréstimo. Faz-nos falta um rio que nasça na sala e desagúe na mente, um coqueiro à porta do quarto, um cantar do pássaro das manhãs todos os dias da nossa vida. Mas só nos apercebemos dos milagres tarde demais, quando as lágrimas nos escorrem das unhas e por cima da cabeça se denote uma auréola suja. Quando já não somos nós, mas uma carcaça sem marca de algo que foi ou deixou de ser, de sangue burocrático e só, de olhos que mentem e despem o mundo com oportunismo, de mãos que batem na inocência e trazem o caminho do abismo. Porque chega a altura em que temos de ser adultos.

Paulo Coutinho



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