«« Conversas com o destino (III) ««

Data 05/07/2011 22:56:52 | Tópico: Crónicas

Uma da manhã e eu ali estava, sentada numa sala de espera onde quem espera desespera.
Porque será que as salas de espera são todas iguais, insípidas de sensações, nas suas variadas cores e formas, cumprem o seu papel criteriosamente, despojar qualquer réstia de exultação do coração mais insensível. Pouco passava das dez da noite quando o telefone tocou. - Vizinha não sei o que tenho, desde manhã que estou tonta, muito tonta, anda tudo à roda e a minha filha não me atende o telefone, desde manhã vizinha. Consegui arrastar-me e só a tenho a si por perto, desculpe, desculpe vizinha mas acuda-me que não sei o que tenho.
A senhora Maria estava agora ligada a uma garrafa de soro e eu esperava. Nesta minha espera tentava decifrar o rosto que fintava o chão mesmo na minha frente, tal como eu esperava, mas ao contrário de mim conseguia manter-se quieta no mesmo lugar, eu já trocara de cadeira uma dúzia de vezes e ela sempre no mesmo lugar, fintando os quadrados pretos e brancos dos ladrilhos.
Por fim levantou os olhos na minha direcção, agarrei esse momento e arremessei a pergunta que notabilizou o silêncio.- Tem algum familiar lá dentro.- Olhou-me então, senti um calafrio, o seu olhar era vazio, mais vazio que as paredes da sala de espera.
De novo o silêncio, não me atrevi a lançar-lhe mais um olhar, agora era eu que fintava os ladrilhos e sentia cravado em mim o seu olhar vazio, pela minha cabeça circulava mil e um pensamentos todos eles me lembravam abandono e morte.- Não tenho ninguém- fintei-a de novo, deve ter no mínimo setenta anos. A sua voz soou de novo tranquila.
- Antigamente tinha vida, depois do meu marido partir, fiquei sozinha muito nova tinha pouco mais de trinta anos, com um filho nos braços, um dia conheci um homem que me prometeu cuidar de mim e amar-me, a senhora sabe como é, nós as mulheres acreditamos no amor, acreditei nele, mas ele era esquisito tinha comportamentos esquisitos, mas eu amava-o,
Visitava-me sempre durante o dia, outras vezes era eu que ia ter com ele aos mais variados sítios, sempre em sítios diferentes. Comecei e ter a pulga atrás da orelha e um dia sem que ele soubesse segui-o, foi terrível, descobri que ele era casado, tinha família, e eu era o tapa buracos do seu casamento.
Parou, respirou pausadamente como se estivesse a ganhar forças para continuar, e eu sem saber o que dizer torcia as mãos desesperadamente, tentando encontrar as palavras que não conhecia para a reconfortar.
- Sabe, com o tempo a minha vida tornou-se num inferno, estava ligada a um homem que era de outra, o meu filho crescia que lhe dizer quando as perguntas aparecessem, que explicação dar. As exigências cada vez eram maiores, ele tinha família tinha uma vida da qual não abdicava, mas achava-se rei e senhor da minha, interferia em tudo, fui-me afastando de algumas amizades que ainda tinha, umas vezes por vergonha, outras por exigência do homem com que estava. Um dia quando me dei conta o meu filho era homem também, não aceitou que a mãe estivesse ligada a um homem casado, doí-me o dia em que o meu filho saiu de casa para não mais voltar, não sei onde está, não sei se é vivo ou morto. Não sei se tenho netos.
E eu ali estava enjaulada na sala de espera sem palavras.
- Hoje tenho pouco mais de cinquenta anos- Arregalei os olhos como pode ter pouco mais de cinquenta anos com aquele aspecto envelhecido, não, está enganada, só pode. Leu-me o pensamento e continuou- A senhora é jovem ainda, vê-se que a vida a tem tratado bem, mas não sabe o quanto ingrata a vida pode ser, não tenho ninguém lá dentro, moro aqui perto e quando não consigo dormir venho para aqui, assim fico menos sozinha, isto hoje está calmo mas tem dias que é o diabo, e aqui ainda consigo ser útil àqueles que estão piores que eu.
O intercomunicador chamou pelo meu nome, a senhora Maria já estava melhor era hora de voltar para casa, levantei-me e beijei aquela mulher, nunca lhe disse que tinha 50 anos, não valia a pena, ela sabia que a vida sempre teve cuidado comigo. Uma destas noites volto à sala de espera, se ela lá estiver faço-lhe companhia, afinal tem sempre alguém que está pior que nós e ainda assim consegue pensar nos outros.

Antónia Ruivo
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