
Os barcos (Thiago de Mello)
Data 11/07/2011 12:53:08 | Tópico: Poemas -> Reflexão
|  Os barcos nascem como nascem dores. E chegam como pássaros ao céu, como flores do chão. São mensageiros. Vêm na crista dos astros, vêm de ventres por onde rolam rastros de cantigas de antigas barcarolas estaleiras. Trazem na proa audácias e esperanças, as cismas e os assombros nos porões.
A mão que os faz, humana, os não perfaz, apenas segue, tímida, ao comando de vozes nascituras que lhe chegam da boca dos martelos e das ripas. A si mesmos se fazem, pelo mando de voz sem boca: os barcos são auroras. Despejam-se na foz de águas escuras. Contudo, chegam sempre de manhã.
Chegam antes, alguns. Outros são póstumos. Há os que não chegam nunca: naufragaram nas primícias do rio. Tantos mastros se vergam na chegada, outros se racham. Partem-se popas, lemes, em pelejas imaginárias contra calmarias. Uns são velozes, zarpam mal-chegados, outros são lerdos, de hélices sem sonhos.
Há barcaças nascidas para as idas ao oco dos mistérios, há as que trazem lendas futuras presas ao convés, as que guardam nos remos os roteiros de grandes descobertas e as que vêm para vingar galeras soçobradas. Há as que já chegam velhas, sem navego.
O mar, sempre desperto, espreita e espera a todos, e de todos se acrescenta. Para barcos se fez o mar amargo e fundo, sobretudo se fez verde. O mar nem sempre os quer. O mar se tranca frequentemente a barcos, e os roteiros marítimos se encantam em lajedos, estraçalhando quilhas e calados.
O coração das caravelas viaja desfraldado nos mastros, invisível bandeira também bússola. Altaneiro, ele surpreende, quando manso, as rotas que se desenham longes sobre o mar. Sextante é o coração, que escuta estrelas, que antes de erguer as âncoras demora-se em concílio amoroso com os ventos.
O coração comanda. Manda e segue. E, à sua voz, os barcos obedecem e avançam, confiantes, pois dos mastros as velas vão surgindo, vão crescendo como cresce uma folha de palmeira, às manobras da brisa sempre dóceis. De caminhos de barcos sabe o mar. Os ventos é que sabem dos destinos.
©Thiago de Mello In, Poemas Preferidos pelo autor e seus leitores, 2001.
Imagem: Claude MONET, Três barcos de pesca.
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