
Cirurgia
Data 17/07/2011 11:47:08 | Tópico: Poemas
| " Que horas são? Não te preocupes, não é tarde. Foi mesmo a tempo."
(Bisturi. Procedimentos habituais de abertura.)
Ei-la: lacerada, arcadas sanguinolentas. Ei-lo: exposto, carnal e naturalmente corado.
"Mas que é isso, então? Porque cobres a cara, cravas a respiração fraudulenta na almofada? Os olhos, cerrados, não embaraçam o tímido perpetrar da luz."
(Podia estar em pior estado, verdade.)
"E agora, abres os braços, assim. Isso. É esse o sentido do vasto, naquela direcção. Segue. Ali mesmo. Sentes-te bem?"
(Um pouco de sucção, por favor.)
"O desconforto, passa? Sim? Está bem. Sou capaz de o fazer, sim, sou capaz. Vamos prolongar-nos aqui?"
(Não consigo aceder, será necessário um afastador. Segure aqui.)
"Mostro-te: não é difícil. Não se podia possuír melhor momento para ser-se. Foi o prometido. Vive. Dou-te este nada. Tudo isso, tudo irá multiplicar-se. Por toda a parte."
(Mas que...Espalhou-se, por toda a parte.)
"Por toda a parte. Marcas por toda a parte e lugar e espaço e ser e tempo, se necessário. Pelo menos é assim que vejo. O que indicam? Coisa nenhuma, lado nenhum. Estão."
(A incisão foi profunda demais. Desfaz-se nas mãos.)
"Não quero levantar-me. A leveza prega-me docemente ao chão. Já temos que ir? Vê, o que temos aqui? Sou incapaz de contorná-lo. Vê. Reconhece-o. Não me digas que é inevitável quebrar."
(Sistólica a 46, pressão a baixar. Está a ir-se.)
"Abandona-te, não fere. Não é o que desejas?: união. Quase lá, quase. Segue-me nesta transição. Podes dar-me a mão, eu finjo que a seguro. Sinto frio."
(Clampe. Vamos!)
"Onde estamos? Alguma turbulência, não pouca. Agarra-te ao que puderes. Depressa. É um choque frontal. Que fizeste?"
(Merda. Óbito: quatro e vinte e três.)
"Consigues ouvir: o piano murmura através dos ontens... Chegaste. Cheguei. Quantas vezes olhaste para trás, menina?"
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