
Uma noite quente eu escrevia Versos tristes no computador A mulher adormecida não ouvia O som desesperado do meu amor Pensei em recolher-me ao leito, Achando que tinha feito, Um bocado de tolice Quando algo passou por mim, por trás, Um vento, eu me disse, “É só isso e nada mais”.
Lembro que o silêncio era intenso, Eu pensei em vê-la Dentro de mim um desejo imenso No céu nenhuma estrela. O relógio bateu meia noite No meu apartamento A solidão fazia açoite Um ruflar de asas invadiu meus umbrais. Penso que é só o vento, Só isso e nada mais.
Os quadros pendurados na parede Balançavam como um pêndulo Minha boca ficou seca Meu corpo todinho trêmulo Como quem viu assombração. Do outro lado da mesa eu vejo Algo que não esqueci jamais: Um morcego com um riso negro Penso que é um pesadelo Só isso e nada mais.
Imóvel, Permaneço acuado por tamanha expectação. Fora do apartamento é densa a escuridão, Dentro da sala surge Um cheiro de excremento seco. A pose do morcego desafia a minha imaginação. A que devo tal visita Senhor das Trevas? Por que invades minha morada com tal ousadia? Como te chamas para que pela manhã minha amada Não diga que estive sonhando? Disse-me o morcego: Covardia.
Não entendi a enigmática resposta Da estranha criatura, Que mesmo estando de costa Tinha um olhar de censura. E ria um riso que era de dar agonia Fazendo sair do meu peito Gritos de gatos negros, e a gritaria Me fez vomitar no assoalho Coisas que eu não queria E ele continuava parado, dizendo: Covardia.
Pensei, repensei, o que seria aquilo? Estava ali tão tranqüilo Lutando com as palavras em busca da poesia, Eis então num rompante Uma coisa repugnante, Invade-me a moradia. Vem tirar-me a paz, a alegria Vem roubar-me o sossego. A noite pariu um morcego Que só fala: Covardia.
Desde o momento daquela estranha chegada Minha preocupação maior era com a minha amada, Pois se estivesse acordada Decerto desmaiaria, Pois o pavor que sentia Daquele animal medonho Ultrapassava os limites do pesadelo ou do sonho. Lembrei-me então da porta, trancada tê-la-ia? O bicho continuava agitando a suas asas, E dizendo entre os dentes: Covardia.
Incrível A palavra cresceu mais do que a feia criatura E foi tomando os umbrais, a sala ficando escura, O olhar do animal ficou então mais aceso, Voltou-se para onde estava A fonte dos meus desejos. Parece que o bicho adivinhava Tudo que eu fazia. O som de sua voz era rouco, Eu cada vez mais louco, Pensei: é covardia.
É nome, ou ele fala de algo que existe em mim? Serei tão ignóbil assim, a ponto de lá do inferno Vir um bicho ruim? O medo que eu sentia foi mudando a direção, Em vez de ser do morcego Temi a própria razão. Por dentro me vi mais feio Que a estranha companhia, Que a todo o momento falava: Covardia.
Quem é covarde aqui, pode afinal me dizer Senhor da escuridão, pois eu quero saber. É covardia o que faço Enquanto ela dorme no quarto Alheia a meu universo? Muitas vezes fui leviano, Inconseqüente, e perverso, Sem dividir com ela as emoções que sentia Mas, declaro que estremeço Ao ouvir-te, caro morcego Dizer: covardia.
Fitei a treva lá fora, mergulhei no passado, É a vida, uma longa noite, Ou um sonho alucinado? A noite com seus vampiros, seus suspiros, Seus espirros de um deus cansado. Se tudo o que fiz foi errado, Mereço ir para o horto, Vendo este anjo torto Violar-me a moradia E dizer com voz de um morto: Covardia.
Dali por diante um novo quadro se fez. Confesso que desejei ouvir coisas que não queria, Pois no fundo eu sabia De minha sujeira interna. Gatos nas paredes arranhavam minhas telas, Um palhaço desenhado começou a chorar, Tal era o pavor do morcego, Que simplesmente sorria, E entrementes dizia: Covardia.
A um gesto inusitado do morcego invasor Surgiu uma grande tela, que me encheu de pavor. Nela eu vi um menino cercado por muitos ratos E junto dele uma flor. Os ratos esperavam a bela rosa murchar Para saltar sobre ele e o seu sangue chupar Em toda aquela agonia A flor lentamente morria Sem nada poder fazer. O menino então chorava Enquanto o morcego falava: Covardia.
Vós, que nas trevas navegas; que a tudo enxergas, Dizei-me o que tu queres, Não vês que eu desejo despertá-la com um beijo Pra esquecer as mulheres? Um mar de leite me espera (a minha alcova sagrada), Oh! Não despertes, não despertes a minha amada. Por que não falas de vez o que desejas de mim, Criatura asquerosa, agourenta e ruim? E o morcego olhando a porta do quarto dizia Num tom lascivo, visguento: Covardia.
Por trás dos montes um brilho anunciou a aurora, Dando-me a esperança daquele bicho ir embora, Pois assim como o diabo foge de uma cruz O morcego é noctívago, não pode ver uma luz. O que vi então me deixou petrificado O morcego lambia os beiços e tinha o falo inchado, Estendeu as asas e voou em direção de meu quarto, A porta estava aberta, lembrei tarde demais. É tudo um pesadelo! Só pode ser isso, Só isso e nada mais.
Quando afinal me soltei do torpor que me prendia, Corri para o quarto para ver se podia Fazer alguma coisa em prol da minha amada. Ouvi então o riso negro da criatura malvada, Saindo em disparada nas trevas que ainda restava. Só me restou o silêncio, silêncio e nada mais. Foi um sonho, disse a mim mesmo, Mas quando olhei para trás, Na porta estava escrito em letras garrafais: Covardia. Olhei a cama e caí. Ela estava vazia!
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