Leia, mas não comente.

Data 19/08/2011 13:53:34 | Tópico: Poemas

A minha avó dizia-me sempre que ler fazia mal à vista. Talvez. Mas desde pequenina que sou míope, que se lixe!...

Pois nesse então, mesmo de candeias às avessas com a minha avó, virava a candeia do direito para mim e deixava-me ficar a ler, pela noite dentro e pelo meu sonho acima... Ali, no halo da candeia, isolava-me do resto da cozinha rústica, do mundo rústico, da vida plebeia, e era princesa. Rainha até, nem que fosse de um reino-no-ar - pois, então!, a minha avó não me dizia que eu andava sempre com a cabeça no ar? É, se eu tinha um reino, era, de certeza lá bem no alto do ar...
Eu era princesa, eu era rainha, eu era heroína, eu era poderosa, eu era corajosa, eu era tudo e tudo!... lá bem no alto do ar, para onde eu partia sempre do cais-que-não-cais bruxuleante da candeia movida a azeite que me propulsionava. Depois, quando descia, era um desastre! Nunca aterrava em pé e metia sempre as mãos pela cabeça, quando tinha que me haver cá em baixo, no mundo real...

Mas era feliz. Era feliz e sabia-o.

Mas não comentava com ninguém a felicidade que eu guardava no ar, porque o ar, para a minha avó, era o suão frio que ainda me punha tísica, se não tivesse cuidado. Ou o relentinho da tarde, que ai de mim!, me trouxesse assobios de rapazolas com olhos compridos... Ou o "ar-que-lhe-deu", quando me achava amarelinha e me preparava sopinhas de leite com chocolate derretido... (tadinha da minha avó!...)

Fui criada a não comentar e a não debater

(também, o que teria eu, nessa época, que debater, a não ser que ler não fazia mal às vistas?!... pensando bem, eu era uma princesinha, sim, e também na vida real, ainda que não o soubesse),

a guardar para mim as palavras, aquelas que eu tinha amealhado nas leituras, ou arrastá-las num cofre, por baixo da terra que ia pisando, como a Princesa Pele de Burro, e... a usá-las só nas galas da minha imaginação fértil, ou vestidas a rigor nas redacções da escola. O resto do tempo andava sempre vestida de pele de burro, mesmo.

Mas, menina criada em casulo de candeia de-azeite-de-casa e em ares amáveis, nunca cheguei a aprender a defender-me dos ares adversos que, eventualmente, me apanharam em corrente fria e me imobilizaram a vontade.

Nem nunca aprendi a comentar alto...

para quê?...

...alguém acreditaria que, sob o colete-pele-de-burro-forçado, eu vestia uma alma livre?...


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