Antepasto

Data 24/08/2011 00:03:12 | Tópico: Crónicas

Semana passada, numa noite amena de pronto socorro, em debate inútil cujo tema era uma prova sem bem sucedidos, falava-se da língua portuguesa e dos seus requintes inúteis; de suas armadilhas grosseiras, de suas regras escuras; ocupava-se em justificar a injustiça, em dar nome aos bois do rebanho alheio. O brasileiro tem preguiça de saber-se, concluí.
Ouvi que a poesia é uma feminilidade infantil e desnecessária. Doeu-me a língua dentro da boca, o par de neurônios em angustiante alvoroço, as mãos amassando uma pedra imaginária, os olhos tencionando incendiar a sala.
- Você não acha?
- Quê?
- Que não devia ser cobrado tanto português?
- É. Não temos com o que pagar.
Cito a afeição que sinto pela palavra, aquela em vermelho coração, posta com solenidade e respeito no branco do mundo. Soube naquele instante sobre a minha sombra tão pequena, à incidência indiscutível da luz dos outros; todos os olhos fixos em mim, como se eu fosse elucidar o óbvio a qualquer momento; como se de mim fossem emergir todas as explicações necessárias para o fim do intervalo.
- A poesia tem uma reputação que não merece, acreditem; como este pão que chamamos de francês mas tem um gosto horrível.
Não engoliram. Nunca viram O fabuloso destino de Amellie Poulain.
Volto ao trabalho com pensamentos libidinosos, um caminhar simples de quem sabe onde vão dar todos os corredores da vida, um sorriso estranho de quem encontra no bolso uma caneta há muito perdida. Faço novamente o propósito extremo de nunca mais esquecer-me.







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