
Conto de Inverno (Dylan M. Thomas)
Data 06/09/2011 11:04:02 | Tópico: Poemas -> Reflexão
| É um conto de inverno Que o cego crepúsculo de neve transporta sobre os lagos E os flutuantes campos da fazenda na taça dos vales, Deslizando tranquilo entre os flocos agarrados com a mão, Sobre o pálido bafo do rebanho junto à vela furtiva,
E as estrelas que caem frias, E o cheiro do feno em meio à neve, e a distante coruja Que adverte entre os apriscos e o gélido refúgio Agarrado à fumaça branco-ovelha da chaminé da estância Nos vales cruzados pelo rio onde a história é contada.
Outrora, quando o mundo envelheceu Numa estrela de fé pura como o pão que boiava sem destino, Como o alimento e as chamas da neve, um homem desenrolou Os pergaminhos de fogo que ardiam em sua cabeça e em seu coração Rasgados e esquecidos numa casa sobre uma dobra da campina.
E ardendo então Em sua ilha flamejante cingida pela neve alada E as esterqueiras brancas como a lã e os poleiros das galinhas Que dormiam enregeladas até que a chama da aurora Penteasse os pátios encapotados e os homens da manhã
Tropeçassem nas enxadas, E o rebanho espreguiçasse, e o gato arisco perseguisse o rato, E os pássaros eriçados saltassem para caçar, e as suaves Ordenhadoras arrastassem seus tamancos sobre o céu desmoronado, E toda a fazenda despertasse em seus brancos afazeres,
Ele se ajoelhou, chorou, rezou, Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha E à xícara e ao pão partido entre as sombras bailarinas, Na casa abafada, no decorrer da noite, À beira do amor, apreensivo e atraiçoado.
Ajoelhou-se sobre as pedras frias, Chorou desde a crista da dor, rezou ao céu nublado Para que a fome fosse embora uivando sobre alvos ossos nus Além das estátuas dos estábulos e das pocilgas com tetos celestes E do cristal da lagoa dos patos e dos ofuscantes currais solitários
Até o lugar das orações E das chamas, onde pudesse vagar sob a nuvem De seu amor cego pela neve e precipitar-se para as brancas tocas. Sua miséria desnuda o golpeava e, arqueado, ele uivava Embora som algum flutuasse no ar enrugado em sua mão
A não ser o vento que excitava A fome dos pássaros nos campos do pão, da água, lançados Nos altos trigais e a colheita a derreter-se em suas línguas. E sua anónima miséria o enlaçava e ele ardia extraviado Quando, frio como a neve, tinha de correr entre os vales cruzados
Pelos rios que desaguam na noite, E afogar-se nos torvelinhos de sua miséria, e estender-se enrolado, Agarrado ao centro desde sempre desejado do branco Berço desumano e do leito nupcial eternamente procurado Pelo crente perdido e o proscrito expurgado da luz.
Liberta-o, gritava, Perdendo-o de todo no amor, e arroja a sua miséria Nua e solitária na engolfante noiva Para que ela nunca germine nos campos da branca semente Ou floresça escarranchada na carne agonizante.
Escuta. Cantam os trovadores Nas aldeias mortas. O rouxinol, Poeira nos bosques sepultos, voa com os órgãos de suas asas E soletra o seu canto de inverno aos ventos dos mortos. A voz da poeira líquida que vem das fontes extintas
Está falando. O córrego seco Salta com balidos e latidos aquáticos. O orvalho repica Nas folhas trituradas e nos reflexos que há muito já não brilham Da paróquia de neve. As bocas entalhadas na rocha são cordas tangidas pelo vento. O tempo canta por entre as obscuras campânulas mortas. Escuta.
Foi um som ou certa mão Que abriu de par em par a tenebrosa porta na terra de outrora E lá fora, sobre o pão do solo, Uma ave se ergueu radiante como uma noiva em chamas, Uma ave amanheceu, e seu peito se emplumou de neve e escarlate.
Olha. E os bailarinos se movem Sobre os mortos, a neve se vestiu de verde, liberta ao luar Com uma revoada de pombos. Exultantes, os cavalos de cascos solenes, Centauros mortos, regressam e percorrem os alvos pastos alagados Nas fazendas dos pássaros. O carvalho morto sai em busca do amor.
Os membros esculpidos na rocha Saltam como ao som das trombetas. A caligrafia das velhas folhas Está dançando. Os traços da idade sobre a pedra se entrelaçam num rebanho. A voz de harpa da poeira das águas se desgarra de uma dobra das campinas. Em busca do amor, alça seu voo a ave de outrora. Olha.
E as asas selvagens se elevaram Sobre a sua cabeça enrugada, e a doce voz das plumas Esvoaçou pela casa como se o pássaro entoasse louvores E todos os elementos da lenta queda se rejubilassem Porque um homem solitário se ajoelhara na taça dos vales,
Sob o manto, em sossego, Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha, E o céu dos pássaros com a voz emplumada o erguia ao sortilégio E ele corria como o vento atrás do voo em chamas Para além dos celeiros sem luz e dos currais da fazenda em calma.
Nos pólos do ano Quando os melros morriam como sacerdotes nas sebes embuçadas E as distantes colinas tangenciavam o tecido dos condados, Sob as árvores de uma só folha corria um espantalho de neve, Precipitando-se por entre os torvelinhos das moitas esgalhadas como cervos,
Andrajos e orações caíam sobre As colinas ajoelhadas e ecoavam nos lagos adormecidos, Perdidos a noite inteira e a vagar por muito tempo no despertar Da ave através dos tempos, das terras e dos flocos de neve. Escuta e olha por onde ela navega no mar agitado pêlos gansos,
O céu, o pássaro, a noiva, A nuvem, a miséria, as estrelas fincadas no azul, o júbilo Para além dos campos semeados e o tempo escarranchado na carne agonizante, E os céus, o céu, a tumba, a ardente pia batismal. Na terra que já fora, a porta de sua morte se abriu de par em par
E o pássaro desceu Numa colina branca como o pão sobre a concha da fazenda E os lagos e os campos flutuantes e os vales cruzados pelo rio Onde ele rezava para alcançar o derradeiro prejuízo E a casa das preces e do fogo, já terminado o conto.
A dança se extingue Na brancura que já não reverdece, e, morto o trovador, Aflora o canto nas aldeias de desejos calçados pela neve Que outrora entalharam as silhuetas dos pássaros no pão profundo E fizeram deslizar as formas dos peixes voadores sobre os lagos de cristal
Degolou-se o ritual Do rouxinol e do centauro morto. As fontes voltam a secar. Os traços da idade dormem na pedra até que a aurora se anuncie. Jaz o júbilo. O tempo sepulta o clima da primavera Que retinha e saltava com o fóssil e o orvalho renascido.
Porque a ave se deitara Num coro de asas, como se estivesse morta ou adormecida, E as asas se movessem em surdina e ele se sentisse louvado e casado, E por entre as coxas da noiva envolvente, A mulher com seus seios e o pássaro de crista celestial,
Foi ele enfim derrubado Ardendo no leito nupcial do amor, No torvelinho do centro desejado, nas dobras Do paraíso, no botão rodopiante do universo. E ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida.
Dylan Marlais Thomas (1914-1953), poeta galês.
In: Poemas Reunidos - 1934/1953, tradução de Ivan Junqueira.
Biografia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dylan_Thomas
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