Onde é a merda da sacristia?

Data 25/09/2011 20:21:04 | Tópico: Crónicas


A casa continua lá, o jardim está igual naquele ar de semi-abandono que sempre teve, a sebe por aparar à espera das vésperas de páscoa, relva murcha e sedenta de um afago liquido que chegava quando enfim chovia. O branco da casa não é bem branco, é assim algo entre o sem cor e o desmaiado a conferir o verde morto das portadas e janelas. Não se pode sequer falar daquelas coisas que normalmente se falam, dos cheiros em dias de festa ou porque a memória me atraiçoa o que acho inverosímil, ou porque simplesmente nunca houve festas, acompanhadas das tradicionais correrias das crianças, das gargalhadas das tias pudicas ante a indiscrição de um tio mais malandro. Nem sequer o cheiro das rabanadas em vésperas de natal, as luzes do presépio a brilhar em mil esperanças da madrugada que anunciam.
Ainda passo em frente dela mas não me apetece entrar e a arrumação que lhe prometo faço-a no sótão das minhas memórias, no canto que não quero mexer, quero-o assim empoeirado e bafiento. Mal respiro com medo que um sopro involuntário desvende algo que não quero recordar.
É só uma casa, muitos chamam a isto casa, e neste momento as reacções que me provoca são muito parecidas. Deram-lhe uma remodelada, alguns recursos mal se percebem porquê, mas continuaram sem regar a relva, sem aparar a sebe, o branco continua desmaiado, o verde das janelas deixaram de representar esperança, antes flores murchas em campa abandonada. As tias continuam por aí, já os tios malandros desistiram e à noite bem cedo fica deserta.
É uma sensação estranha a de estar numa sala que já senti minha e estar rodeado de estranhos, ver as contribuições quase gerais e sentir ventos de mediania para ser simpático, ver rasgos de brilhantismo a serem pura e simplesmente ignorados e a mediocridade aplaudida quase de forma histérica. A vara engordou e tomou formas porcinas. As porcinas engordaram e tomaram formas suínas, pavoneando-se despudoradas numa espécie de pseudo vedetismo onde chafurdam gulosas e gordas.
Não é uma crítica, é uma constatação, já desisti de criticar. Só queria saber onde é a merda da sacristia para encomendar a missa de fiéis defuntos, entregar ao pároco da freguesia uma esmola choruda e dar-lhe os parabéns pela lenta agonia a que nos devota. As tias gostam disso, da tristeza e corações trespassados.




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