
Poema – Prólogo (Pedro Tierra)
Data 11/10/2011 22:08:06 | Tópico: Poemas -> Reflexão
| Fui assassinado. Morri cem vezes e cem vezes renasci sob os golpes do açoite.
Meus olhos em sangue testemunharam a dança dos algozes em torno do meu cadáver.
Tornei-me mineral memória da dor. Para sobreviver, recolhi das chagas do corpo a lua vermelha de minha crença, no meu sangue amanhecendo.
Em cinco séculos reconstruí minha esperança. A faca do verso feriu-me a boca e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.
Fui poeta do povo da noite como um grito de metal fundido.
Fui poeta como uma arma para sobreviver e sobrevivi.
Companheira, se alguém perguntar por mim: sou o poeta que busca converter a noite em semente,
o poeta que se alimenta do teu amor de vigília e silêncio e bebeu no próprio sangue o ódio dos opressores.
Porque sou o poeta dos mortos assassinados, dos eletrocutados, dos “suicidas”, dos “enforcados” e “atropelados”, dos que “tentaram fugir”, dos enlouquecidos.
Sou o poeta dos torturados, dos “desaparecidos”, dos atirados ao mar, sou os olhos atentos sobre o crime.
Companheira, virão perguntar por mim. Recorda o primeiro poema que lhe deixei entre os dedos e dize a eles como quem acende fogueiras num país ainda em sombras:
meu ofício sobre a terra é ressuscitar os mortos e apontar a cara dos assassinos.
Porque a noite não anoitece sozinha. Há mãos armadas de açoite retalhando em pedaços o fogo do sol e o corpo dos lutadores.
Venho falar pela boca de meus mortos. Sou poeta-testemunha, poeta da geração de sonho e sangue sobre as ruas de meu país.
Sobreviveremos Perdemos a noção do tempo. A luz nos vem da última lâmpada, coada pela multidão de sombras.
A própria voz dos companheiros tarda, como se viesse de muito longe, como se a sombra lhe roubasse o corte. Nessa noite parada sobrevivemos. Ficou-nos a palavra, embora reprimida.
Mas o murmúrio denuncia que a vitória não foi completa. Dobra o silêncio e envia o abraço de alguém cujo rosto nunca vimos e, todavia, amamos.
Nessa noite parada sobrevivemos. Sobreviveremos. Ficou-nos a crença, de resto, inestinguível, na manhã proibida.
Pedro Tierra, escrito em 1974.
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