A triste figura

Data 20/10/2011 18:33:36 | Tópico: Crónicas


Segurava o cigarro entre os dedos, amarelecidos pela nicotina. As rugas pendiam-lhe das pálpebras como persianas, por cujas frestas entrevia entre novelos de fumo, percepções que lhe sacudiam o estado de morte aparente.
A barba rala por fazer emoldurava-lhe o rosto decrépito, denunciando a idade avançada de um passado velho e sem identidade. Os ombros faziam de cabide ao casaco puído nos cotovelos, que não lhe escondia os ossos proeminentes de um corpo em exaustão. A pele esticada das mãos esforçava-se por conter as falanges sem romper.
Levava sempre muitos sacos plásticos com alguns haveres, às vezes pedia lume para o cigarro que esquecia e acabava por se apagar nas mãos que se esquecia lhe pertenciam. Saía como entrava, findo o café e aqueles minutos de introspecção contra os moinhos de vento esbatidos pela baforada agridoce do cigarro que esquecia, até que a cinza lhe tombava na lapela como uma etiqueta que um dia lhe pendurariam no dedo grande do pé.
Com a mesma insignificância, o mesmo desprezo. Não lhe vão saber o nome, nem a data que nasceu. E só um saberá a data em que morreu. Aquele que lhe pendurar a etiqueta no dedo.




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