De mim e de outras mulheres/amar não é ridiculo

Data 27/10/2011 18:26:27 | Tópico: Crónicas


Era uma canção monótona numa mistura de lengalenga, com trava-língua. O Sr. Correia cantava na alfaiataria num ritmo de marcha militar pautando as tónicas com uma arremetida mais violenta da tesoura que ripava o tecido meticulosamente desenhado a giz nos moldes que haveriam de fazer as vaidades aos clientes.
O Sr. Correia era um artista em toda a acepção da palavra, paciente e bondoso. O meu pai levava-me lá para tirar as medidas às calças de terylene que segundo a moda seriam de “boca-de-sino”. Eu odiava ver as calças a dançar em volta do sapato enquanto caminhava e fazia sempre birra enquanto o Sr. Correia me tirava as medidas, birras essas prontamente caladas por um tabefe a preceito que o meu pau me aplicava com mão pesada. Eu calava os protestos e ficava com uma lágrima muda a escorregar-me pelo rosto que despencava pelo precipício do queixo e se derramava na careca brilhante e profusa do Sr. Correia que aninhado tirava as medidas da bainha.
. Então? Não chores… O pai está só a brincar contigo… Proferia para me animar enquanto olhava de soslaio para o meu pai em tom de reprovação.
- Um homem não chora, que é isso? E veste o que os pais mandam e mais nada. Quando ganhar para ele, já pode vestir o que quer.
Para me animar, uma vez as medidas tiradas, e sob o olhar sarcástico do meu pai o Correia sentava-me num banquinho, acendia um candeeiro de secretária e desligava as restantes luzes. Ficava à frente da luz e com as mãos fazia sombras chinesas que ganhavam vida com a voz de falsete que fazia para me contar as aventuras das imagens que me desenhava aos olhos. As lágrimas secavam e ficava assim extasiado com a história que me contava, com as imagens que pulavam. Mudava o tom de voz em função da imagem, e a história desenhava-se ali na parede com as mãos mágicas do Sr. Correia.
O Correia era um menino grande sem medo de chorar nem de amar, um menino que ao proferir a palavra amor, fosse a que pretexto fosse, não soava a ridículo, porque amar não é ridículo. Ridículo é não ser capaz de dizer “eu amo-te” com medo de cair no ridículo. Ridículo é viver a vida nesse ridículo de ausência de conjugação do verbo amar.




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