Arte poética (Jorge Luís Borges)

Data 16/11/2011 11:21:37 | Tópico: Poemas -> Introspecção


Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E nossas faces passam como a água.

Perceber que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, e que essa morte
Que a nossa carne teme é a mesma morte
De toda noite, que é sono, que é sonho.

Vislumbrar num dia ou num ano um símbolo
dos dias dos homens e de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

Ver na morte o sonho, entrever no ocaso
Um triste ouro, sendo assim a poesia
Que é imortal e pobre. Pois a poesia
Volta sempre, tal como a aurora e o ocaso.

Às vezes durante as tardes um rosto
Nos olha do mais fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Tão verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável,
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Jorge Luis Borges, em poema magnífico, sobre a transcendência.

Imagem: Povos nativos de Andaman (Índia). Os ‘ciganos do mar’ Moken do mar de Andaman desenvolveram uma habilidade única de focar debaixo d’água, a fim de mergulhar por comida no fundo do mar. Sua visão é 50% mais precisa que a dos europeus.
Foto por James Morgan/Survival.



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