 
  
    	Fica o não dito por dito (Ferreira Gullar)
    	Data 29/12/2011 23:06:32 | Tópico: Poemas -> Intervenção
 
  |  o poema antes de escrito não é em mim mais que um aflito silêncio ante a página em branco
  ou melhor um rumor branco ou um grito que estanco já que o poeta que grita erra e como se sabe bom poeta(ou cabrito) não berra
  o poema antes de escrito antes de ser é a possibilidade do que não foi dito do que está por dizer e que por não ter sido dito não tem ser não é senão possibilidade de dizer
  mas dizer o quê? dizer olor de fruta cheiro de jasmim?
  mas como dizê-lo embora o diga de algum modo pois não calo
  por isso que embora sem dizê-lo falo: falo do cheiro da fruta do cheiro do cabelo do andar do galo no quintal
  e os digo sem dizê-los bem ou mal
  se a fruta não cheira no poema nem do galo nele o cantar se ouve pode o leitor ouvir ( e ouve) outro galo cantar noutro quintal que houve.
  (e que se eu não dissesse não ouviria já que o poeta diz o que o leitor – se delirasse - diria)
  mas é que antes de dizê-lo não se sabe uma vez que o que é dito não existia e o que diz pode ser que não diria
  e se dito já não fosse jamais se saberia
  por isso é correto dizer que o poeta não revela o oculto: inventa cria o que é dito ( o poema que por um triz não nasceria)
  mas porque o que ele disse não existia antes de dizê-lo não o sabia
  então ele disse o que disse sem saber o que dizia? então ele sabia sem sabê-lo? então só soube ao dizê-lo? ou porque se já o soubesse não o diria?
  é que só o que não se sabe é poesia
  assim o poeta inventa o que dizer e que só ao dizê-lo vai saber o que precisava dizer ou poderia pelo que o acaso dite e a vida provisoriamente permite.
 
  Ferreira Gullar, In: Em alguma parte alguma, p. 21-25, Ed. José Olympio, 2010. 
 
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