Fossilizado

Data 31/01/2012 09:01:17 | Tópico: Prosas Poéticas

Eu, que tantas vezes lembrei o futuro nostálgico de minha infância, pus-me certo dia a registrá-lo para a posteridade, temendo que pudesse desaparecer por completo do mundo quando seu sonhador desaparecesse. Sou culpado por isto de orgulho, um tolo sentimento de demasiado (e injustificado) apreço pela própria criação, em detrimento de alguma verdade universal a qual me escapa o sentido. Que seja. Que seja eu culpado e que meus velhos sonhos de um mundo que não foi sejam guardados, esquecidos e enterrados até serem descobertos e traçarem aos olhos de seus desbravadores os vestígios do que poderia ter sido e que, portanto, assim será.

Comecei, pois, por escolher o material no qual registrar aquele futuro. E foi fácil concluir que pedra ainda é o melhor material para tal propósito. Papel desmancha e a tinta apaga e sequências de código binário descrevendo complicados algoritmos computacionais onde o conteúdo está subentendido e impresso em frágeis meios magnéticos ou óticos estão fora de questão. Pedra não precisa de eletricidade e protege seu conteúdo ainda que embaixo de toneladas de areia embaixo do mar. Planejava que minha obra sobrevivesse por eras geológicas, não até que a falência de alguma empresa levasse junto meus dados. Pedra o seja.

Desta feita, meditei sobre qual linguagem adotar para a transmissão de meu legado. Inglês é hoje a língua internacional padrão, graças ao velho Império Britânico e sua colônia Americana. Mas distante de ser a mais falada, perdendo para Mandarim ou Espanhol. Porém impérios caem e povos falam a língua do colonizador em voga. Decidi-me portanto não por uma língua popular ou por uma morta como o latim, mas por uma sempre viva e de fato universalista: a matemática.

Através de operações algébricas simples e sequências numéricas codificando uma gramática própria de significados, meu futuro estaria a salvo de um eterno e esquecido passado. Tive o cuidado de incutir a esta gramática apenas verbos e substantivos de caráter universal, pois busquei deixar a mensagem clara para inteligências futuras, ainda que talvez um tanto insípida pois desprovida dos contextos históricos e pequenos dramas humanos presentes nas grandes obras literárias.

Enfim, decididos os meios e a forma de execução, passei meus últimos anos nessa ousada e cansativa empreitada, na qual incessantemente entalhei inúmeras lápides de granito com os desígnios de minha imaginação, onde dei forma ao mundo não como se fazia presente na sordidez das miudezas cotidianas ou continuamente reescrito em registros históricos de sucessivos conquistadores ou em exatas taxonomias geológicas, mas como julguei que seria o certo. Como deveria ter sido fosse eu o criador. Orgulho e presunção são preços pequenos a pagar por minha ousadia.

Eu, último e solitário remanescente de uma enriquecida família de colonizadores, agora ironicamente empregava desta fortuna alheia para o genuíno bem da humanidade: limpar seu nome e desfazer suas vis ações neste planeta através da força e eloquência das palavras. Minha força e dinheiro esvaiam-se nessa obsessiva tarefa a qual me incumbi. E nas vastas terras da propriedade de meus antepassados, sob olhares atônitos de poucos viajantes, erigi as lápides com meus escritos, um verdadeiro livro aberto sob o céu, um cemitério de idéias e de contos inacabados, onde um dia arqueólogos futuros se perguntarão se fósseis na pedra dizem a verdade ou ainda se essa importa de algo. Sob uma das lápides, deixei vago meu jazigo para minha assinatura final.


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