Sob o signo da morte de Mário de Sá-Carneiro

Data 09/04/2012 12:36:05 | Tópico: Poemas

Sob o signo da morte de Mário de Sá-Carneiro
(um ciclo experimental)

1.

Li que foi em Paris, não no do Texas,
de Win Wenders, mas no outro, sito em França,
no Hotel de Nice, à Rue Victor Massé,
número vinte e nove, a vinte e seis

de Abril, no ano de mil e novecentos
e dezasseis, um aedo decidiu
que o seu poema nem mais um verso
teria, recolheu-se ao quarto, à luz

que a janela deixava, quase digo,
por teimosia, entrar naquele quarto,
recolheu-se, mas como quem recolhe

no braço dextro o braço sinistro, a
asa doce da morte pela amarga
cintura da mais bela estricnina.

2.

O Fernando Pessoa, traduzindo
Plauto, escreveu que morre jovem o
que os deuses amam, diz acrescentando
Mário Cesariny que também

são feras estes deuses, digo, são
vampiros estes deuses que ao banquete,
no Olimpo, devaneiam-se com sangue
e carne frescos, jovens que fenecem

porque os deuses os amam e tanto amam
que recriam o gesto de Atreu sem
recordarem que o tempo é da palavra

de Tiestes, palavra que pertence
agora aos homens, a estes que a memória
guardam a cada passo novo dado.

3.

Visita-me o poema Antero de
Quental, traz uma ogiva ao peito em fio
de prata presa, ao peito, diz, traz uma
palavra, talvez a última palavra,

aquela que é navalha cintilante,
que esventra a madrugada na demanda
da alvorada, mas como quem procura
o caminho do ventre, esse regresso

que sempre se quer, sempre negado,
mas, insiste, diz, a última palavra,
aquela que coloca o derradeiro

ponto final na música que alimenta
o corpo do poema, o respirar
que cada verso em si, cioso, guarda.

4.

Fico por aqui, fico nesta cama,
e, quando forem oito e vinte, vejam
como o meu corpo de outro toma posse,
não serei sombra ou luz, serei presença,

somente isso, presença, nada mais,
uma espécie de móvel, um retrato,
o que de mais banal aqui houver,
neste quarto de hotel parisiense,

fico por aqui, fico a olhar o tempo
escorrer lentamente nas paredes,
nas vidraças, nos passos apressados

do José Araújo escada abaixo,
e lentamente, como o tempo, deito-me,
tomo posse do corpo e ganho rosto.

5.

Cinco, este é o teu número, não outro,
porque cinco é somente cinco, é o único
número que se escreve com o mesmo
número, ele próprio, de letras,

cinco frascos na mesa repousando
do teu arseniato de estricnina
que esses teus cinco dedos agarraram,
os mesmos cinco dedos que souberam

erguer os cinco versos de “A minha alma,
fugiu pela Torre Eiffel acima” o
cinco será teu número fatal

no imenso coliseu, gladiador,
onde defrontarás as tuas sombras
para assim inventares tua morte.

6.

Escrever um poema é morrer um
pouco, deixar a pele tal como a
serpente sobre a pedra, depois tê-lo
sob a imagem eterna da gaveta

aguardando que o tempo o faça ser
exactamente o que é, um poema, e
cumpra o destino para que nasceu,
sendo assim o poema é um objecto,

criação, utensílio de morte,
escrevê-lo de pouco vale então,
juntar palavras prenhes de sentidos,

talvez o melhor seja respirá-lo,
recusar a palavra, descobrir
seu autêntico signo, e edificá-lo.

7.

Este quarto deixou de ser o quarto
do Hotel de Nice, agora é o da infância
o outro, aquele da Quinta da Vitória,
regressaram as sombras, os ruídos,

as noites habitadas pelo medo,
e a esperança escoando-se lenta-
mente pelas arestas desta insónia
que teima em resistir, em consagrar-se

aos mistérios lúgubres da noite,
e o homem treme, oscila entre a razão
e o que sente, mas sabe que o que sente

é mais do que um delírio, mais que
a mera fantasia de criança,
porque cada sombra abre a dor à ausência.

8.

No instante derradeiro recordaste
o nome do Tomás Cabreira Júnior,
talvez até alguns dos versos do
teu “A um suicida” ou talvez não,

talvez uma mulher, talvez Helena,
quem sabe o que à memória chegou
no instante derradeiro, como sabes
este não é o tempo que o Alexandre

O’Neill bem soube um dia decifrar,
tempo em que os suicidas assim como
os animais falavam, mas não falam,

este não é o tempo para os outros,
porque este é o teu tempo de Narciso,
Mário sob as luzes da ribalta.

9.

De smoking recebeste esta visita,
esta mão que se dá sem nada em troca
pedir, também não há mais nada, nada
resta para o comércio na morte,

ou, pelo menos, para o que está morto,
mas tu, meu caro Mário de Sá-
Carneiro, que encenaste e interpretaste
aquela que é a tua própria morte,

negoceia, revê toda a matéria,
perscruta cada olhar pela plateia
e na algibeira leva estas moedas

como helénicas dânacas que aguardam
o seu destino, a tua companhia
para a maior de todas as viagens.

10.

O homem não vive, nasce e morre, Mário,
deixou escrito o mestre Pascoaes,
se o homem não vive, não escolhe a própria hora
de se fazer à estrada a que chamamos

vida, por que não, Mário, fazermos
nós a inscrição que a branco nos impõem
se destino existir, e assim vencê-lo,
embora feito fique e permaneça

na voz do outro, o que diz, era o destino,
mas, cá dentro, sabemos que foi nossa
essa caligrafia que se exibe

perante o olhar surpreso de quem passa,
nós fomos detentores da alforria
e, por isso, de facto, nós vivemos.

11.

Bem sei que não soubeste que o poeta
Guilherme de Faria foi à Boca
do Inferno e lá ficou, ainda hoje voa
sobre aquele que é agora o seu abismo

e sobre o mar, não quis nenhum telhado,
nenhum quarto de hotel, nem companhia,
nem cidade, só quis voar e voou,
o Guilherme era assim, não teatral,

bem sei que para a morte é indiferente,
porque há múltiplas formas de morrer,
a mais paciente é deixar o tempo

fazer o seu trabalho de cinzel
na pedra que nos coube, outra é um verso
dos tais que há que morrer para o escrever.

12.

Leva contigo um livro, mesmo que
vás como tu desejas, à andaluz
sobre um burro e hajam latas, acrobatas,
palhaços e que rompam, como dizes,

aos berros e aos pinotes, leva um livro
como fez Christian Rosencreutz no
poema do Pessoa, leva um livro,
um livro que será ou seja teu,

a “Dispersão”, o “Indícios de oiro”, este,
sim, este que nasceu depois de ti,
e encena para espanto da plateia

o que há na eternidade de um poeta
para que todos vejam, todos sintam
que até na morte existe poesia.

13.

Senta-te aqui de novo à mesa deste
café onde nasceu o “Manucure”,
e prova novamente a sensação
que na altura sentiste à flor das unhas,

podes mesmo poli-las e pintá-las
com o melhor verniz parisiense,
mas vem observar homens e mulheres,
decifrar os seus gestos, ler jornais

alheios e saber que o mundo inteiro
repousa nessas mãos, mas sobretudo
vem observar quem passa com a pressa

presa ao olhar enquanto nós aqui
consumiremos passos que não sendo
nossos os nossos versos contaminam.

14.

Para o António Quadros, fulgurante
e breve, são perfeitos adjectivos
para a tua passagem pelo mundo,
para a palavra vida, a tua vida,

mas que conceito oculto há na palavra
vida, que imagem traz na algibeira o
poeta que capaz seja de nos
desvelar o que é vida, ela própria,

a palavra, que é breve e fulgurante,
pergunto, enquanto esqueço o que as palavras
na tua poesia em mim despertam,

não quero, não preciso desbravar
o seu significado, quero o signo
e colho do teu mundo as sensações

15.

Escuto o Figueiredo e sinto que,
tal como qualquer um de nós, estás
entre Eros e Thanatos, não há outra
voz que melhor nos diga o teu caminho,

haverá sempre sombras, haverá
sempre focos de luz pungente, sempre
lágrimas e sorrisos, mas em ti
habitam sins, constantes sins, viagens,

oferendas, nasceste em berço de oiro,
talvez o oiro de indício, talvez,
não sei, o que sei, sinto-o no que

escuto pela voz do Figueiredo,
tal como o próprio objecto, que és tu, Mário,
aquele que ergueu vida em plena morte.

16.

Tomo posse da minha morte, tomo
posse com estas mãos que deus me deu,
mesmo que deus não haja para me as
dar, mesmo que as palavras sejam ocas,

desprovidas de luz, sejam amorfas,
mas súbito é o assombro de a deter
sob a pele, sobre a pele, como se em mim
nada mais real fosse do que a morte,

como se tudo, nado e por nascer,
se resumisse à lágrima, ao grito, ao
esgar inicial, tudo germina

como acto derradeiro, tomo posse,
assumo, desta que é a minha morte,
porque se a cumprir, cumpro-me a mim mesmo.

17.

Não digam quem eu fui, mas quem eu sou,
pouco importa o que foi a minha vida,
se alguma vida alguma vez me coube
viver, pois nada existe no horizonte

se não for estas mãos ou este olhar a
tocar, qual São Tomé, ver para crer,
nada existe e, por isso, nada existiu
ou existirá, nada fui e nada serei,

sou, simplesmente sou, poeta verso
a verso renascido, e suicida
por vocação, poeta futurista,

modernista, mas sem futuro, sem
modernidade, tenho só o tempo,
este tempo que falta porque quero.

18.

Eu sou o Esfinge Gorda, mas El Rei,
daqui e de além verso, sou o Mago,
embora seja sempre este Neófito,
que em verso, por catarse, se redime,

sou o que não tem mãe, e como pai
tem um livro de cheques que nem sempre
cumpre a hora de ser peso na algibeira,
sou Narciso que em espelho se faz Lago,

procurei insano o Outro que há em mim,
o Outro, o Ouro verdadeiro da Alquimia,
mas fiquei sempre aqui, neste casulo,

crisálida que nega as asas porque
sabe que outro é o voo, outra é a escolha,
a escolha de ser Rei do seu destino.

19.

Podem não querer ler, mas ler de facto,
e por entre as palavras decifrarem
este filho de Dédalo caído,
porque esse era seu único desígnio,

cair, sentindo o sol preso ao seu hálito,
e abraçar os caminhos que há no mar
de um só golpe, chegar não pode haver
sem que se parta, podem não querer,

mas queiram porque a cifra não está fora
do que as nossas ocultas mãos alcançam,
a cifra dorme, dorme nos seus côncavos,

e dorme porque o tédio embala o
berço esquecido que há em cada casa,
corpo de quem só passa por passar.

20.

A, Mário de Sá-Carneiro, pa-
lavra, Florbela Espanca, suici-
da, António Botto, é, Antero de
Quental, utilizada, Ana Cristina

Cesar, para, Guilherme de Faria,
designar, Maria Ângela Alvim, a,
Vladimir Mayakovsky, pessoa, Al-
fonsina Storni, que, Eduardo Guerra

Carneiro, põe, Horacio Quiroga,
termo, Sylvia Plath, à, Manuel
Laranjeira, sua, Antonia Pozzi,

existência, Cesare Pavese,
sim, Camilo Castelo Branco, fa-
zê-lo é antecipar o inevitável.

Xavier Zarco
(2009 / 2010)


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