Talvez seja do mar ...

Data 12/11/2007 20:46:29 | Tópico: Prosas Poéticas

Talvez seja do mar.
Talvez seja do mar o frio que me invade por dentro, neste estado matizado entre o cinza anilado e o cinzento pardacento - uma mão de favila e outra soprada p’lo vento.

Flutua em vela solta o pensamento.
Desce o convés pelas cordas d’ amarra e deixa-me aqui sentada nestes jardins feitos de nada, sem ter por perto, nem o coimbrã fado, nem sequer o choro quente duma guitarra.

A onda é árida, a espuma esboça sorrisos em bocas desprovidas de siso.
O xaile é negro, a chinela está gasta, e a alma, essa, caminha agora descalça e busca margens d’outrora.
Tropeça, não tomba, mas chora, a cada grão de areia, de baba sangrenta que se solta do casco do cacilheiro na hora morta.

Deslizo.
Sou búzio oco em lânguido desassossego. Segrego-me das côdeas de um pão já bolorento. Em migalhas esfarrapadas, resvalam sem contenção, dos seios às coxas, em busca da terra, em arrepios metálicos de guerra cálida e logo, logo, são sementes jazidas, findas. Sementes de imperfeição.

Na chacina de odores iniciais, a neblina borda lençóis d’abismos nos traços de um mar enxuto, de um mar tão túrgido de gestos ternurentos.
Abre campos nas janelas imprevistas por onde tribalistas e jograis guerrilham à vista desarmada de faróis, os beijos, os desejos, as carícias, os afagos simples e tão banais, em ritos de póstuma glória, em loas marginais e ventos de proa rectilínea.

Talvez seja do mar.
... mar de redes e de velas rubras desenhado sempre nos ouvidos das serpentes.

Concluo: estamos doentes, moribundos, padecidos num olhar espalhado e ferido, numa rota de ave sem penas.
Resta-nos o abrigo breve dos poemas, se a noite é canalha e nem sequer uma lágrima se espalha neste mar cor de sisal.

Talvez seja do mar, talvez sejam do mar as muralhas, as paredes intransponíveis de sal...



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