Tantas coisas a precisar de serem contadas ao mundo

Data 03/06/2012 11:16:22 | Tópico: Textos


Costumava pensar para os meus botões - um dia ainda hei-de escrever um livro com a minha história - tendo, contudo, a perfeita noção de que nunca ninguém se iria interessar por ela. O que poderia despertar interesse numa história de alguém a quem o trabalho fustigava sem dó, o corpo enfezado de uma criança que teve a infeliz sorte de ter nascido num berço pobre? Decerto que a ninguém!
Mas, ainda assim, crescia-me no peito uma vontade enorme de o contar ao mundo. Queria que o mundo soubesse do meu fado e acreditava que se condoeria perante aquilo que, na minha inocência, já se me afigurava ser uma injustiça. Contar-lhe-ia dos cansaços de dias infindáveis onde não havia tempo para descansos, sob pena de se confundirem com a preguiça. De campos de cultivo empoleirados em socalcos impensáveis, por onde carreiros enladeirados se assemelhavam a trilhos de formigas capazes de carregos maiores do que o seu próprio peso. Escadinhas de lajes cravadas em muros de xisto por onde subiam e desciam, sempre a medo, os meus desequilibrios míopes. A carga de trabalhos onde o milho me metia todos os anos. As regas do poço ao final do dia, quando já nenhuma voz de ninguém por perto, na longínqua "desprezos" da minha infância. As urzes e as carquejas a reclamarem a minha presença matinal de roçadoira em punho, para que as levasse num molho, aos ombros, até ao curral das ovelhas que me agradeciam mais tarde em ruminações de serenidade. Das azeitonas agarradas aos ramos de frondosas oliveiras centenárias, algumas à beira de verdadeiros precipícios, por onde me adentrava e lhes deitava as mãos roxas da geada, empoleirada numa escada de doze banços, respigando um a um até não haver mais nenhum ramo enegrecido por bolinhas minúsculas. Das vindimas em corrimões incontáveis que ladeavam cada uma das parcelas de cultivo espalhadas por todos aqueles socalcos de encostas inacreditáveis, onde cabazes e cestas de verga se amontoavam em carreira à espera que os levassem. Das praganas do centeio dos sequeiros, que me picavam as costas e me faziam correr o suor em bica até à eira. Do ancinho que me provocava calos nas mãos mimosas. Da cabeça que me doía sob o derreio das cestas bem cheias aquando do esbeiro das terras inclinadas, numa faina imparável, desde o fundo até ao cimo onde as penedas careciam de miolo ou ali não se haveriam de criar raízes algumas.
E tantas, tantas outras coisas a precisar de serem contadas ao mundo. Coisas que ainda hoje continuam bem vivas na minha lembrança mas que não sei do modo de as contar... nem sei, tampouco, se o mundo se interessaria de as saber.




A imagem é da aldeia de Chãs D´Ègua, uma de muitas que existem na Serra do Açor, onde ainda são bem visíveis os socalcos onde se cultivava o sustento do seu povo. Hoje, quase todos estes socalcos em terras semelhantes, se encontram completamente abandonados...


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