A malvada da (des)culpa

Data 25/07/2012 21:53:40 | Tópico: Textos

Não me lembro de que alguma vez me tenha sentado no colo e me afagasse os cabelos, ou os seus braços me envolvessem o pescoço num gesto físico de demonstração de carinho. Mas eu sabia que me amava à sua maneira, quando, por exemplo, me sabia doente e ficava de cama. De vez em quando, ouvia-lhe os passos pela escada acima e assomava a espreitar à porta do quarto perguntando-me se estava melhor da tosse, encostando-me com ar preocupado a costa da mão à testa verificando se tinha febre, insistindo para que tomasse o xarope e os supositórios Dolviran, que me provocavam um ardor incompreensível visto serem para me fazer bem... mas nada que se comparasse às injeções aplicadas pelo alfaiate que era uma espécie de enfermeiro lá da terra - toda a gente, mais cedo ou mais tarde, viria a necessitar de injeções e quase todos os dias havia alguém a querer levar uma pica na casa do primo Brasílio. Era um ritual ao qual só os acamados se escusavam ao mandado visto ter de ser o primo Brasílio a ter de se deslocar ao leito do enfermo - e me faziam suar de terror! O meu coração começava logo a galopar assim que lhe ouvia a voz à chegada, com o estojozinho brilhante de inox debaixo do braço, que pousava com todo o cuidado em cima do naperon da mesinha de cabeceira e de onde extraía uma seringa enorme que fervia num recipiente próprio antes de lhe introduzir aquela agulha de metro cuja ponta enterrava no frasquinho sugando-lhe o líquido que em três tempos (que durava uma eternidade), entre a passagem fria do algodão com álcool e a picadela na nádega descoberta, sentia entrar-me na carne numa operação interminável.

Por outro lado, a minha irmã tinha estratégias de lhe roubar minutos de atenção, escondendo-se debaixo da mesa da cozinha assim que o ouvia começar a subir as escadas para o almoço - escondia-se sempre no mesmo sítio.
Ele, advertido pelo sinal da minha mãe que lhe dava conta da ausência da pequena, já sentado no seu lugar de sempre, entortava-se para a frente e metia a cabeça por debaixo da mesa onde encontrava uns olhinhos brilhantes de exaltação, feliz por ter sido encontrada pelo pai, mais uma vez. Saltava-lhe para o colo e punha-se a abraça-lo com força deitando por terra qualquer resquício de recusa que houvesse (e não havia) em receber aquele abraço. Riamos todos e finalmente podíamos almoçar em sossego.

Não sei se ela alguma vez o conseguiu voltar a abraçar vinte anos depois, mas a mim, o pudor estúpido impediu-me sempre de o fazer.
E tenho pena que não tivesse sido de outra forma. Mas hoje, ao lembrar-me disto, penitencio-me por nem sequer ter tentado um única vez que fosse, mas... já não posso fazer nada. Ficou a sombra medonha do remorso, que de quando em vez me assalta o pensamento.
Não quero a culpa. Ao invés dela, que me continua a querer a mim.



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