Quero-te legatária de mim

Data 05/09/2012 14:05:39 | Tópico: Poemas

Na tua ausência vou processando a minha morte.
Sempre que partiste, eu morri um pouco
De tal forma que agora só me resta morrer.
Olho para as minhas mãos e já não as entendo como sendo minhas
Os meus olhos já foram mar
E são agora uma barca abandonada no meio do areal.

Não receio o fim de tudo,
A menos que o fim seja o vazio dos teus braços.
Alguém me disse que a minha morte será um novo princípio
- Cada um bebe da fonte que quer - respondi!
- Por mim, bebo da fonte onde não há medo do medo.
No entanto, sinto medo… sabes?
Os meus sonhos, já não são balões de hélio com mil cores e formas variadas.
Mantive-os teimosamente presos a mim com finos cordéis.
Há agora um medo profundo.
De tanto os ter seguros na minha mão,
Quando chegar o momento,
Receio já não ser possuidor da capacidade de os largar,
De os deixar viver sem mim.
A minha demência transforma-se numa prisão
E esta numa sombra, numa ausência.

Envelheço nos textos que vou descobrindo esquecidos em velhos cadernos.
Rasgo os poemas para me libertar da ousadia
Que um dia tive de me sentir poeta.
Devolvo aos amigos,
A todos os que esporadicamente me deram os bons dias
E a todos aqueles outros rostos que nunca esconderam o seu ódio por mim,
As suas palavras que usei em semente nas folhas brancas deste caderno.
Cheiro o teu perfume de mulher amada
Que guardei no segredo dos meus dedos.
São facas frias a mergulhar nesta carne seca,
A recordação dos beijos que não soube dar,
Os beijos que deixei vazios numa fonte de água.
A morte vingou-se em mim.

Todos os livros me angustiam.
Os que li e os que não li.
Alimentei em mim
A ideia de um dia deixar o meu nome na lombada de um livro,
Seguramente esquecido na prateleira de uma livraria.
Prevejo, que essa será mais uma dessas ideias
Que fui alimentando e que irá ficar pelo caminho,
Tal como a árvore que plantei
E para a qual já não terei tempo para que ela me olhe de cima.

As rugas, os cabelos brancos são abismos
Para os quais vou perdendo a capacidade de ganhar impulso para os ultrapassar.
Compreendo agora que acordei tarde
Nesta ideia de esculpir em cada palavra os teus cabelos,
Os teus olhos
O teu sorriso maroto
A tua pele rósea que os meus dedos aos poucos vieram a descobrir.

Quero-te herdeira do meu sorriso,
Mesmo que o deixes abandonado numa parede de tijolos já desfeitos pelas chuvas. Desejo que ao olhar o mar,
Nesse mesmo instante saibas que nunca te esqueci.
Ali está o mar que vimos de longe,
Ali está o muro de pedra da memória
E aí estão todas as coisas que só a ti disse.
Quero-te legatária de mim.




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