Meridiano de Greenwich …

Data 24/11/2007 22:26:29 | Tópico: Prosas Poéticas

Apenas as mãos
permaneciam geladas.

Na fechadura do portão a chave rodou à meia esquadria, no jeito conhecido. De três folhas, sem os modernismos de agora, em folha de zinco, já a vira muitos dias chegar e partir, partir e chegar.
Naquele dia, o verde da folha – o verde dos campos de arroz -, reflectiu um olhar distante, desapegado das coisas, dos tempos, dos momentos. Um olhar longínquo, inexpressivo.

Esticou-se para além de si.
Languidamente, puxou e correu os trincos. Abertas as portas, pegou o portátil da calçada, a mala. Tirou o casaco, lançou tudo para o banco traseiro do carro.
Em gestos sempre mecânicos, enroscou-se no acento. Ligou a ignição, o auto rádio começou a tocar, avançou, parou dois metros à frente, voltou à garagem. Repetiu um a um os gestos, inversos. Na mente não lhe escorriam versos, nem poemas, nem rimas, nem coisa nenhuma. Dormente!

Apenas as mãos,
sobre o volante, permaneciam geladas. Mortas, inanimadas, ao redondo do momento. Ao despojamento de gestos e de vontades. Longínquas, percorriam o globo de fins de tarde.

Meridiano de Greenwich …

O alcatrão devorava o carro, cuspia-lhe a lama das últimas horas. Filas de luzes esmaecidas perfuravam p’lo umbigo o nevoeiro matinal. À esquerda o Monte Gordo esventrava cúmulos de nimbo, adivinhando-os nuvens rosas sem pudor.
Em estertor de si, o lábio inferior sangrava aos dentes, às palavras deglutidas a céu aberto. Em estilhaços de bombas detonadas no céu-da-boca.

Viajava,
viajava excessiva, nos fusos confusos de um tempo. Nos fusos de uma vida,
num tempo em que ainda não conhecia a palidez do verbo. Um tempo abrigo, de lar antigo. Conhecido, apenas o verde sereno dos campos de trigo, o vermelho d’amoras silvestres, os cheiros intensos dos poejos, das segurelhas, das hortelãs, os bagos trincos das romãs e o sabor inigualável dos queijos acabados de fazer servidos no café da manhã.
E o pão escuro, e a oração …
E o cheiro do esterco acumulado no tojo do curral, o fermentar do vinho no lagar, as lajes escorregadias d’acesso ao casal. O loureiro, de folhas perenes, enorme, imenso, e as coroas com que endeusara musas de vento!

Na memória das coisas, as suas mãos pequenas de menina enterradas na massa alva, coalhada a cardos.
A voz da avó (juraria que a ouvia ali, naquele instante…). As rugas afectivas sob o lenço de três bicos. O nariz adunco, o rosto seco e o viço imprevisto na palavra:
-Enche os “xixos” menina que as tuas mãos são boas, não cozem a massa. Tão sempre geladas… Sempre geladas, rapariga, não tens sangue nas veias. Ou será sangue de barata??.. Enche, vá lá!

Não sabia. Obedecia. Enchia.
Escorriam-se os soros pelos dedos, apertados, moldados em concha. Em concha… e o mar ao longe, tão longe. E as redes, e os afectos.
Um a um, sobre a rede, repousavam “xixos”, ordenados, aprumados. E aquele “monte gordo” e encimá-los…
- Bem cheios, ouviste? As freguesas não os compram senão transbordam.
Transbordavam… tudo transbordara no vazio do tempo. No barrento do tempo, no soro pelágico do rio. Do rio e do riso descontrolado.

Ontem como hoje, na tonsura das ovelhas, na recolha do leite, nos gestos repisados, em veredas transversais. No pasto, no balir dos animais, das ovelhas sem lã… era então Primavera.
Depois, o Verão, o Outono dos frutos secos, das palavras escassas,
… e dos figos,
e das passas,
e de todos os passos cruzados em meridianos errados.

Estava fria aquela manhã.
Não, não sentia o corpo, não se sentia na alma.

Cerrou o colo trapezoidal, reprojectou-se para a frente, equilibrista, acrobata, nos graus da longitude de si, nos degraus angulados do passado de geografias imaginárias. Cartografou o espaço, desenhou abcissas (des)coordenadas, arrevesada. No ubíquo de uma cartografia de linhas irreverentes.

Álamos percorridos, da beira de todas as estradas e, obstinadas,
apenas as mãos permaneciam geladas…


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