Quotidiano I

Data 07/09/2012 23:29:27 | Tópico: Poemas

Por vezes sentimos que todos nos olham
Afaga-nos o incómodo de sermos nós,
Que tudo está mal.
Desagradamos a todos os que se cruzam connosco.
A roupa que vestimos atrapalha
A camisa parece querer sair das calças,
As meias escorregam e enrolam-se por baixo dos calcanhares,
Os sapatos achinelam
A sola emita o som irritante de um patinho de borracha,
A camisola parece estar torta
A malha deformou e encolheu após a lavagem,
O casaco prende os movimentos.
Tudo começa mesmo antes de sair de casa,
O cabelo ganhou uma forma esquisita,
Empinou-se para um lado,
Acachapou em cima, encaracola atrás.
Não há pente nem secador que consiga domar tão irreverente atitude.

Já na rua descobrimos que ocupamos espaço,
A nossa imagem está por todo o lado.
A nossa sombra acelera por baixo dos pés,
Passa-nos à frente
Expõe a nossa silhueta na nudez da calçada.
Procuramos um refúgio nas sombras dos beirais
E com isso temos o secreto anseio de nos livrarmos da nossa sombra.
Mas, tanto esforço depressa se mostra inglório.
Olhamos para o lado,
Eis a nossa imagem assediante nas montras dos estabelecimentos
E como um azar nunca vem só,
Se na noite anterior choveu
As poças de água são o espelho da nossa alma.

Cáusticos, não inventamos novos hábitos,
A bica matinal no mesmo café de sempre
Onde o empregado ao descortinar a nossa chegada na contra luz da entrada
Em artes de contorcionista e de adivinho lança o nosso pedido para lá do balcão.
E mesmo que não seja esse, nessa manhã, o nosso desejo,
Embrulhamos a nossa vontade no papel pardo da delicadeza
E aceitamos com um sorriso contrafeito o que nos é colocado na frente.

Quando pensamos que estamos a salvo de olhar a nossa imagem- o inevitável acontece!
Na parede do café há sempre um espelho meio escondido por trás de garrafas
Estrategicamente colocadas com o risco do nível a meio
( há um em papel amarelado com uma letra em tons de gordura que informa:
"as garrafas expostas são para consumo desta casa"),
A nossa expressão aparece reflectida no preciso momento
Em que levamos a chávena à boca
(e sentimos o velho incomodo de alguém que nos olha, admirado,
Parecendo querer dizer-nos que estamos a enfiar o nariz na chávena),
E se olharmos com mais atenção,
O espelho reflecte outro espelho mesmo nas nossas costas,
Reproduzindo até ao infinito o nosso rosto,
Nesse momento somos a memória viva do rótulo do fermento Royal.
Não vale a pena fugir ao inevitável.

Em dias assim, o mais ajustado
É fazermos parte de um rio de gente anónima
Sem nascente nem foz.



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