Entre um ás de espadas e uma dama de copas [em memória de Luiz Goes]
Data 19/09/2012 09:09:26 | Tópico: Poemas
O menino de cotovelos espetados sobre a mesa, Silencioso e ímpio louva-a-deus De braços em celestial prece. Dedos sobre os lábios pungentes, Simulando ser o tocador da gaita do amolador De tesouras, facas e capador de gatos, Que nesse instante passa na rua Num arrasto de morte. O corpo a dançar ao som das vozes Que deambulam pela taberna, Espíritos numa gruta de desilusão, Falperra que se enche ao fim da tarde Com o recolher dos operários, Momentos antes imergidos Numa torrente de vida alucinada. O som das sirenes das fábricas, Determina-lhes o pêndulo da vida, Formigas sem formigueiro nem rainha, Formigas sem asas nem carreiro. Menino já homem numa pose desprendida, Olha e vive a jogatina Dos homens obtusos, Galinhas de vistas curtas, Repenicam cartas de um baralho Seboso de vícios ao centro da mesa. Sente na face o ar empestado em vinho e tabaco, Bruscamente deslocado pelas cartas Que sobre a mesa são lançadas. Embala os seus sonhos nesse voo, E apreende as jogadas, Os sinais secretos, a simulação E acima de tudo, a arte de desenhar cruzes e bolas, Reflexo de vitórias e derrotas Sobre um pedaço de papel pardo. Aprende a queimar tempo, A negar a imaginação, Aprende a jogar a vida Num tempo que se esgota Entre um ás de espadas e uma dama de copas. Luiz Goes - Andam pela terra os poetas