O rastilho que me sobra

Data 17/10/2012 20:38:29 | Tópico: Poemas


Ao fim de tantos anos
com os braços a fazer de remos
e uma âncora negra tatuada
no hemisfério esquerdo do peito
acabamos sempre por acumular
algo que não nos serve para nada.

Tenho agora toda a sede
de quantos desertos atravessei
e o cansaço dos exaustos invernos
que passei a juntar a lenha
que me há-de aquecer um dia
quando o frio me sacudir
a transparência mórbida dos ossos.

Encho as mãos vazias
com a poeira de todas as miragens
amaldiçoando a surdez dos deuses
que nunca vieram desenterrar
o grito que escondi no fundo do quintal
quando todas as pétalas se desfizeram
e o sonho murchou nos canteiros
sem nunca ter dado qualquer fruto.

Resta-me ainda, intacto,
um rastilho que nunca se incendiou
e que guardo numa caixa fechada
para improvisar um voo de asas envernizadas
quando a noite subir a ladeira
e me vier convidar para dançar.





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