eu/eles - 1ª parte

Data 02/12/2012 22:20:03 | Tópico: Textos -> Outros

“Peço a um livro que crie em mim a necessidade daquilo que ele me traz.”
Jean Rostand

1ª PARTE


Nasci no Rio de Janeiro, num quente mês de Julho.
Dos anos que lá vivi recordo o cheiro a terra, depois de uma forte chuvada; de correr descalça num pequeno campo que havia por trás de nossa casa, cheiinho de canas-de-açúcar e jaqueiras… Parecia um pequeno paraíso numa grande cidade linda e movimentada!

Lembro-me dos Natais (como se fosse hoje!) com meus primos, mais velhos do que eu um pouco; que apareciam cedíssimo: “- Vamos? “- Gritava Dudu! - Papai Noel já passou lá em casa e em casa de todas as titias…

Éramos tantos. Filhos de quatro irmãs que moravam todas próximas umas das outras. Um ninho de perfeição…

Lá em casa, um irmão mais velho que idolatrava, uma irmã mais nova que protegia, uma mãe que parecia contente e um pai que adorava.

“-E a leitura?...e a leitura?…”;
“-Já lá chego, um pouco de paciência!”

Meu irmão começou cedo a ter problemas com a leitura. Minha mãe zangava-se, gritava e ambos “liam” as “historinhas” vezes sem conta. Sentados na sala liam, reliam e eu ia ouvindo num misto de alegria e tristeza:
“- tadinho, - pensava de mim para mim - ler deve ser tão difícil!...ele faz tão bem aquelas contas esquisitas! Mas as histórias…: “Rapunzel”; “ A Gata Borralheira”…
Afinal tinha um problema que mais tarde se veio a saber ser dislexia/disgrafia.
Para disfarçar, decorava as histórias e recontava-as, fazendo de conta que as lia no colégio, porque tinha vergonha.

Assim chegou a minha vez de entrar no Colégio de Stº António, onde as nossas primeiras classificações eram representadas através de estrelas. Mesmo os trabalhos menos bem-feitos recebiam uma estrelinha em papel de jornal (o que entristecia quem a recebia)! Havia a prateada, mas o sonho de todos, era a dourada!

Colégio de Stº. António-Rio de Janeiro-Brasil
(Foi necessário escrever este texto para procurar no Google esta recordação…)

1964

Eu era estrábica, gorda e tímida; os livros foram, desde que aprendi a ler, o meu refúgio, as minhas ilhas, os meus reflexos do bem e do mal… talvez por isso, comecei a ler muito cedo.

Tínhamos televisão a cores, vários canais, desenhos animados do Walt Disney, discos em vinil, todos os filmes e livros desde “O Gato das Botas” à “Bela Adormecida”! Éramos, sem dúvida nenhuma, privilegiados. Só nos faltava o amor de uma Mãe.

Meu pai, único português lá em casa, decidiu vender tudo e trazer-nos para Portugal.
Quando chegámos à aldeia, o frio era tanto; do carro do vovô conseguia ver…

As crianças (recordo-me bem) com as maçãs do rosto de um vermelho arroxeado que brilhavam e as mãos também…

As mulheres vestiam longas saias pretas plissadas, camisas brancas cobertas por grossas camisolas de lã e xailes cruzados nos ombros. Pesadas socas de madeira eram enchidas por meias pelo joelho que, por sua vez, deixavam antever pernas cobertas de pêlos o que não admirava, uma vez que os seus buços escuros sombreavam os lábios hirtos e secos! O cabelo preso naquilo que eu vim saber chamar-se “puxo”, as mãos calejadas e inchadas do trabalho do campo, sangravam de cieiro e frieiras… à frente de um carro de bois cujas rodas chiavam com um ruído característico!
Passada uma ou duas semanas estava matriculada na escola da aldeia…

Seria quase imediatamente apresentada à que seria (re)baptizada em minha honra (apanhei quatro “bolos” por dois erros ortográficos!), à célebre:

Stª Rita de Cássia ou PALMATÓRIA (e lá se foram as estrelas douradas…)

( Cont. )



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