Licor Beirão

Data 03/12/2012 19:22:56 | Tópico: Contos -> Romance

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Parte I
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Parte II
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(continuação)

Eu olheio-o atordoada, sem saber de que lado do seu raciocínio veio a pergunta inesperada.

- Na vida, ou na escrita?
- Comecemos pela escrita…

Sorri. Ele acompanhou a viagem que fiz com o olhar, para além da alma, dos sentimentos, dos afectos, das coisas simples, das coisas por inventar.

- O bater do coração… - disse eu, finalmente. - …doucement, - acrescentei – para que o seu ritmo não me atrapalhe o olhar, a busca da criatividade, o saborear da respiração… ou inspiração! – e atirei-lhe um olhar brincalhão que ele agarrou no ar, como se fosse um passarinho. Naquele momento, só me pareceu um menino feliz, o meu douto companheiro da noite.
O silêncio voltou a prender-nos. Ele tirou um cachimbo do bolso do sobretudo caído na cadeira do lado e apontou-mo:

- Não te importas…?
- Não, de todo. – sempre gostei do aroma adocicado do tabaco de cachimbo, estive para dizer-lhe, mas não disse.

- E na vida…?

Por um momento perdi o fio da conversa, tão hipnotizada estava pelos seus gestos seguros, pelo ritual das suas mãos, pelo brilho semicerrado nos seus olhos.
Ele percebeu a minha instantânea abstracção, sorriu, calcou cuidadosamente o tabaco no cachimbo, reacendeu-o e segurou-me:

- O que te faz correr, Marília?

Desta vez ri com gosto, era a terceira pergunta seguida que me fazia, mas não me senti examinada, ou intimidada, pelo contrário, somente agradada com o interesse dele.
O que me faz correr…?
Engraçado, sempre quis responder àquela pergunta. O politicamente correcto seria montar rapidamente uma resposta com uma frase pré-fabricada, do tipo: “o amor e o desejo de ser feliz”, ou “ a perseguição de um sonho”, ou ainda “um bom livro para escrever”… mas em vez disso, fui ainda mais rápida e respondi:

-A urgência.

Ele parou de respirar, com a boquilha do cachimbo entre os dentes e a cortina ténue do fumo entre nós, impregnando-nos de cheiros de tabacos nobres, whiskeys maduros e açúcares de flores (de ervas aromáticas…). Depois riu com gosto, e eu ri também, numa espécie de cumplicidade infantil.

- A urgência?! – e os seus olhos riam também, acima de qualquer perplexidade.

- Sim, a urgência é a única coisa que me faz correr… - disse eu, saboreando aquele olhar dele. – nada como uma urgência, um estímulo que se tem que aproveitar no segundo, uma ideia que se tem que anotar, antes que nos fuja, um empurrão de que tenhamos que aproveitar o impulso. A dinâmica da urgência pode ser contrária à harmonia da perfeição, para algumas pessoas, mas para mim, parece ser a adrenalina ideal. Funciono melhor, sob o seu efeito. Não rapidez... Há todo um caminho que pode ser longo, da urgência ao feito, sem pressa. “Agora ou nunca” é a minha palavra-passe.

Ele continuava de sorriso aberto, esquecido do cachimbo. Pousou-o, depois de alguns segundos e agarrou-me as duas mãos.

- Sem pressa, mas com urgência… -

disse, como que assimilando o que eu dissera. E. de repente, levou as minhas mãos aos seus lábios quentes, demorando o beijo num cerrar de olhos que me pareceu durar séculos.

Olhei para ele, no torvelinho de uma tontura, e uma ideia flutuante pousou-me na imaginação a mil: eu, recém-naufragada de um relacionamento mal escolhido e pior sofrido, que estava ali a fazer com uma digníssima, influentíssima figura do altíssimo panorama nacional?... que teria eu, uma insignificante figura de força pouca, esperança nenhuma e algum jeito com as palavras, a esperar dele?... que reacção teriam as pessoas que suportavam a minha existência, se me soubessem próxima a “ele”? Pior: que reacção teriam as pessoas que ainda me magoavam por dentro?... Respirei fundo: cobardes são os valentes cuja fortaleza sugam da fraqueza dos outros – e depois, onde eu já ia!, isto era apenas um encontro agradável, um flirt de fim de festa, uma fuga lúdica, um jogo de palavras.

- …quero que me ames, Marília. -

Era a finalização da sua frase anterior, mas eu quase nem me apercebi disso, demorei uns segundos a reconstruir-me. Havia qualquer coisa na voz dele que deitou por terra a minha teoria do simples jogo de sedução. Qualquer coisa que me percorreu como carícia profunda, uma certa chama nos seus olhos que nos ligou, forte e intensamente, naquele instante. Senti-me segura, serena, fortalecida.

- Esqueci-me de dizer uma coisa… ou tu te esqueceste de perguntar…- “tratei-o por tu”, pensei. Mas nem isso já me admirou.

- O quê? – e a voz era rouca, os olhos brasas vivas…

- ”O que te basta,…
- ...Marília?” –

interrompeu-me ele, completando a pergunta, ainda de olhos presos nos meus.
Depois respondeu ele mesmo, tapando-me a boca com os dedos indicador e médio:
-O amor, espero… e, antes que me perguntes: a mim bastou-me um poema:

Comove-me a inocência
de ter pouco, querendo tudo,
de ser louco, sendo todo,
de ser feliz num segundo,
de ter medo e ir ao fundo…
sem pressa
mas com urgência.


Senti-me desfolhada, como página, por aquele homem: aquele poema constava na página 35 do meu livro. Vibrei na mansidão duma lágrima, que ele, sem pressa, recolheu, num pequeno gesto de veneração.

E, simplesmente, deixei que ele me lesse - até ao fim, ou até ao esgotamento da urgência.


*** FIM ***











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