Restos da América
Data 12/01/2013 14:25:16 | Tópico: Poemas
| Este poema é baseado no relato de Frei Bartolomé de Las Casas sobre a conquista da América e é a ele dedicado.
A ti, América, restaram somente As avançadas furiosas, O preclaro comandante à frente Das hostes guerreiras Ávidas de ouro e sangue! Restaram-te somente A pele trigueira ensangüentada, Os crânios partidos E os miolos esmigalhados No solo calcinado.
Magua de Guarionex, Marien de Guacanagari, Maguana de Gonabo, Xaraguá de Bechechio E Higuey de Higuanama, Reinos da Ilha Espanhola, Outrora ricos e populosos, Fecundos e abundantes, De altas montanhas E férteis riachos e ribeiros, Tão grandes como o Ebro, O Duero e o Guadalviquir, Restaram-te somente Tuas mulheres violadas, Teus príncipes enforcados, Os golpes de espada, Os rumores de tantos prantos, De tantos ais e gritos de pavor! Restaram-te as lâminas perfurando Os ventres grávidos, Gargantas degoladas, Os cães do preclaro comandante A estraçalharem teus filhos, As apostas cruéis sobre quem De um só golpe de espada Abriria um índio ao meio! A ti, América, restaram somente As chicotadas, as bastonadas, As bofetadas, os socos e as maldições.
Sangrentas matanças nas ilhas De São João e de Jamaica, O sêmen corrupto Do estupro e do assassínio Na ilha de Cuba, do grão-senhor Harthuey. Enfim, Neruda tinha razão! A ti, América, restaram somente A espada, a cruz e a fome! Homens reluzentes Que só conseguiam grunhir: “- Donde está la plata? Donde está la plata?” E a peste, e a morte e o terror Que acompanhavam teus algozes!
De Nicarágua à Nova Espanha, De Cholula à vila de Tepeaca, Das províncias de Tupeque, De Ipilcingo e de Columa, De Guatamela, no mar do Sul, A Naco, Honduras Ou Guaiamura, no mar do Norte, Sangue, tripas e extermínios Consagraram tantas hóstias Entre cânticos e louvores entoados Sobre teu solo já abençoado, América! Solo da onde brotou também A carnificina e a perfídia, A dissimulação e a mentira A tirania e a devastação Na prisão de Montezuma, Na destruição de Viclatã, Nas parturientes e velhos Lançados às fossas De estacas pontiagudas, No escárnio do comandante Que queimou os teus senhores, Dizendo prestar-lhes homenagens.
A ti infligiram malditos estancieiros, Terríveis calpisques, Vis mineiros Sedentos de ouro vil – Eldorado manchado de sangue – Malditos A trucidar, a destruir, A injuriar, a perturbar, A prejudicar, a inquietar, A atormentar, a oprimir a tua gente, Enquanto se persignavam Viciados, corrompidos Desonestos e desordenados Como um certo João Colmenero Em Santa Marta.
Oh, pobres almas aflitas Em tormentos, em angústias, Em tristezas e aflições, Oh, pobres almas amarguradas Sob o jugo de mil aborrecimentos, Sob o martírio de loucos enraivecidos, De furiosos inimigos Como a tenra carne estraçalhada Entre os cornos de touros enfurecidos, Como presas amarradas A lobos, leões e tigres esfaimados – Doze milhões de índios trucidados, Quinhentos mil Lucaios expatriados, Três mil léguas de terras, Repletas de gente, arrasadas, desoladas. Só Pedrarias, qual um lobo esfaimado Que se lança sobre um rebanho de ovelhas pacíficas, Tornou desertas mais de quarenta léguas, De Darien à província de Nicarágua, Matando, destruindo, queimando, Seqüestrando, torturando, defraudando, Roubando, aniquilando, Desolando tudo e todos, Tantos e tão grandes reinos Desde o ano de 1504.
Oh, quantos órfãos deixados para trás, Quantos homens e mulheres seqüestrados, Quantas abominações execráveis, Quantas calamidades e angústias, Quantos suspiros e vagidos, A liberdade roubada, O corpo e a alma assassinados, Os templos profanados Por demônios, súditos A servirem quem vive De carne e sangue humanos. Oh, toda tua riqueza Na mão de gente iníqua, Dos agualizes do campo A perseguir e a caçar tua gente nas montanhas, A manter toda a terra Sob comenda cruel e tirânica Todo o teu povo como se fosse Paus, pedras, cães ou gatos Vergastados com anguilhas, até a morte, Por teus carrascos!
Oh, malditos e desnaturados Que obrigavam reis e senhores Homens e mulheres, Crianças e velhos, Tornados escravos e cortesãos, A trabalharem dias inteiros, a fio, sob o sol, Sem direito a descanso, água ou comida. Malditos desmesurados A separar famílias inteiras, Maridos de suas mulheres, Pais de seus filhos, Mães de seus rebentos, Tornando a vida tão desesperadora Que as próprias mães Esganavam e matavam seus filhos Ou tomavam ervas para abortar Ao sentirem-se grávidas. Malditos responsáveis pela morte De mais de sete mil crianças Na ilha de Cuba, pela partilha E pela fome de todo um continente, Por tantos índios doentes, Caídos pelos caminhos Na desesperada tentativa De encontrarem o caminho de volta para casa.
Oh, América de Panuco e Jalisco, Do Reino de Iucatã E da província de Santa Marta e Cartagena, Da Ilha da Trindade ao Reino da Venezuela, Dos Grandes Reino do Peru e de Granada, Teus rios limpíssimos de súbito Tingiram-se de rubra cor, Teus campos férteis e formosos Tornaram-se açougue de carne humana, Alimento para abutres e soldados.
Não houve nem haverá Tribunal que os condene, Ação ou julgamento que reparem Tamanho dano e destruição Contra aqueles que diziam matar por direito. América, não há quem te restitua A riqueza roubada, A glória perdida. Agora, há somente Um paraíso destruído, A sangrenta história das matanças, Tua nudez saqueada Ante os mercados internacionais.
E hoje... Hoje eu não vejo as edificações modernas, Não vejo os autos passando velozes, Nações fantasmas e a Plaza Mayor! Não vejo conquistadores ou libertadores, Pedro, Cortez, Alvarado, Montejo, Bolívar. Vejo somente a História General de las Índias, Generais e usurpadores! Terra escravizada, grilhões nos meus pés, Canudos! Vejo somente o que restou De um ato de violência, Os filhos do estupro e da destruição, As ruínas de Tenochtitlan, Tua história, floresta e povo Estarrecidamente dilacerados, América!
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