ANOTAÇÕES ENSONADAS NO QUARTO DE DORMIR

Data 02/02/2013 19:35:21 | Tópico: Poemas

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ANOTAÇÕES ENSONADAS NO QUARTO DE DORMIR

.1.

Abro as pálpebras. Reparo na parede que o quadro pende torto bem como toda sua natureza morta. Ele, inclinado, e o mundo tão reto. Fiquei cá pensando meio abobado, meio sério: não estaria tudo errado e o quadro certo?

.2.

Total ausência, como fora um vaso quebrado que nem a última consciência de ter sido vaso íntegro pudera ter... Um tempo indefinível e estranho eclode. O mundo me reabsorve e despenca um despertar de luzes e sons diretos no meu crânio. Suspeito um qualquer movimento. Admito o sol causticante. Reconheço meu corpo lasso estirado à cama. Pode haver uma vida qualquer em outros formatos? Pois o sonho pode ser tão claro quanto a vigília a ponto de criar confusão resolvível apenas pelo paladar da língua. De pronto mordisquei uma maçã. Não. Ainda não estava morto.

.3.

Deitado, meus olhos encaram teus pés, teus pequenos e delicados pés com aqueles dedos recurvados e recolhidos, os mindinhos subnutridos, quase sem unhas, resultado do escravizador uso das sandálias e saltos. Recosto minha cabeça neles, tal como faço em teu peito. Contrários reunidos. Sou agora, de fato, teu avesso ao teu inverso.

.4.

No mais inexpugnável breu, imagino subversões: os livros da estante a devanearem histórias diferentes das originais – sublevação das próprias letras agora deitadas e misturadas, - a velha escrivaninha de pernas sempre firmes a dormitar de pé como um cavalo, o tapete só aguardando meu entorpecer para encenar seu vôo das Arábias. Tento incorporar a calma. Tão silêncio... Não escuto autos na rua, sequer os latidos dos cães. A geladeira trabalha incansável e incessante na distância da cozinha e chega-me em som de leve suspiro. Ao ar percebo até o ínfimo arfar de asas de algum pequenino inseto extraviado. É aí então que se projeta, belicoso, aquele pensamento intruso: o meu passado, em algumas imagens claras como o dia, contrastando-se ao amigável escuro. Dele sim, tenho medo.

.5.

Devastando a amplidão do espaço negro, suplantando-o como um herói triunfante, o branco, um branco tão deslumbrante, tão ofuscante, que em nenhuma vigília tal claror poderia sobreviver. A página em branco do meu sonho prontinha para ser contada... Restava-me, como bom devaneador, dormir para obedecer. De manhã, geralmente não sobra nada. Acho que o alvor do dia traz espessa escuridão à vivência real das almas...

(Gê Muniz)



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