A menina que caíu ao céu

Data 19/02/2013 12:54:00 | Tópico: Poemas

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A menina que caíu ao céu




Amélia era a minha melhor amiguinha. Lembro-me que passávamos tardes inteiras a brincar na rua, nas escadas que davam para o quinteiro à frente da minha casa: fazíamos uma fogueira de brincar, com tudo o que era preciso, menos o fogo, que a minha mãe passava a vida a dizer que com o fogo não se brinca!... então, apanhávamos pequenos pedacinhos de cisco, amontoávamo-los por baixo de uma lata de sardinha vazia, que enchíamos de água e fazíamos um caldinho de azedas, colhidas nas paredes do quinteiro. Ah, a água também a íamos buscar a minha casa, directamente do caneco, porque estávamos expressamente proibidas de subir as escadas e ir para perto do poço de água, acontecesse o que acontecesse!...

O poço de água, com a parede exterior visível feita de pedrinhas miúdas que o meu pai arranjara com muito empenho, era uma tentação! Havia um balde, que se descia com uma roldana, e, lá no fundo, aguinha fresca, tão fresca, que, quando a minha mãe me permitia ir com ela, ajudar a encher o caneco, e me dava a beber um bocadinho, por uma jarrinha de barro que estava guardada numa reentrância da parede interior do poço, os meus lábios ficavam a saber a neve e a gelo - eu sabia a que a neve e o gelo sabiam, porque gostava de chupar os "pendurelhos", que nos meses de Inverno enfeitavam de cristal os ramos da laranjeira grande, mesmo à minha porta...

Nas vezes que me tinha sido permitido ir junto do poço - sempre acompanhada da minha mãe ou de alguém "crescido" -, ficara sempre maravilhada: lá no fundo, a água parecia tão azul e calma! (Lembro-me sempre dela azul, engraçado... talvez porque só me fosse permitido ir lá no Verão, quando as escadas não tinham gelo, ou as ervas do chão não me molhavam as meias, ou o céu não era cinzento e assustador, reflectido no fundo do poço...)

Um dia, eu e a Amélia estávamos a brincar às senhoras cozinheiras e faltou-nos água, para o caldinho da tarde... eu queria ir a minha casa buscá-la, mas a porta tinha-se fechado, com um golpe de vento e então pedi à minha amiga para ir buscar uma latinha de água à casa dela, que era só, só, um pouco mais além...

Ela foi, e eu, distraída com o meu cãozinho Moleque, fui apanhando pimpilros, o nosso "arroz", por essas paredes fora.

Quando voltei, depois de uma corrida atrás do Moleque, que como de costume desandou, à vista da cadelinha da Sra Micas Lampião, não vi a Amélia em lugar nenhum... nenhum, mesmo!, fui procurar na minha casa (a minha mãe já tinha chegado, entretanto), fomos procurar na casa dela (que encontrámos também com a porta fechada), fomos rua acima, rua abaixo, chamámos, gritámos... mas da Amélia, nada, nem o vestido com papoilas que ela trazia!...

Até que alguém (dos que já se tinham juntado a procurar a Amelinha) se lembrou de subir as escadas do quinteiro...

Dizem que ela foi para o céu - caíu ao céu, com certeza, penso eu - eu sempre achei que o céu era no fundo do meu poço, tão azul, tão sereno, tão puro...


M***


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